Os mortos-vivos

fevereiro 25, 2010

Tudo é um símbolo
J.W. Goethe

Hell is infinite and circular
Flann O´Brien, The Third Policeman

A vingança é um prato que se come frio
Ditado espanhol

“Angel – O Anjo da Vingança” (1982), de Neil Jordan, é um daqueles filmes que provocam uma perturbação na alma, impossível de se desgarrar depois do seu bizarro e silencioso final. Para um primeiro longa metragem, é impressionante como Jordan consegue puxar o espectador para uma gramática cinematográfica aparentemente inócua, mas, na verdade, repleta de estilo e personalidade.

roduzido por Jonh Boorman (o diretor de “À Queima Roupa” e “Excalibur”, do qual Jordan foi consultor) e fotografado por Chris Menges (um dos maiores iluminadores da Grã-Bretanha), “Angel” pega o espectador pelo pescoço ao levá-lo numa viagem de vingança onde a alucinação se torna a única realidade, e o Mal parece ser a única presença real nos quatro cantos do mundo.

De fato, Jordan sempre foi fascinado pelo problema do Mal em cada um dos seus filmes posteriores. Seu tema predileto é a a duplicidade da alma humana frente ao um mundo ambíguo por natureza, onde a salvação é um milagre quase impossível. Chamem isso de gnóstico se quiserem, mas como ninguém aqui é teólogo, é melhor problematizar a análise do que resolver com um simples peteleco puritano. Assim, ternura e brutalidade, amor e ódio, sedução e repulsa, Deus e o Diabo – tudo isso convive de maneira simultânea em cada fotograma dos filmes de Jordan. Sua coerência se mantém inalterável em sua filmografia: a crueldade da inocência em “A Companhia dos Lobos” (1984), “O Milagre” (1992) e “The Butcher Boy” (1998), a atração pelas aberrações de “The Crying Game” (1993), a brutalidade do mundo em “Michael Collins” (1996), a ternura do Demônio em “Entrevista com o Vampiro” (1994) e, finalmente, a ira de Deus, em “Fim de Caso” (1999), seu melhor filme até agora, e neste “Angel”.

A história é de uma simplicidade terrível: saxofonista (interpretado por Stephen Rea, ator-fetiche de Jordan) se envolve numa noite com uma moça surda-muda que é assassinada num crime brutal. Traumatizado, ele parte para um plano de vingança onde executará os criminosos um por um, sem dó ou piedade. Nada mais rísivel. No entanto, com esta trama a lá Charles Bronson, Jordan realiza não só um impecável filme psicológico, em que a mente do saxofonista se fragmenta em delírios paranóicos, mas também conta, entre suas cenas editadas de forma ágil e com a ajuda da iluminação etérea de Chris Menges, a iniciação espiritual deste sujeito dentro do coração das trevas.

Para transmitir esta sensação de que há uma série de forças obscuras em torno de Danny, o saxofonista, Jordan se utiliza da realidade simbólica que nos envolve o tempo todo, mas dificilmente percebemos. Neste ponto, apesar de ser irlandês, ele está mais próximo do tcheco Franz Kafka neste filme. Em seus romances inacabados, em especial “O Processo” e “O Castelo”, Kafka usa uma linguagem clara, precisa e burocrática, para jogar seus personagens quase-anônimos num inferno onde a danação é a certeza e a salvação é uma falácia. Mas isto não acontece por um motivo determinista, como a falta de predestinação, ou a desigualdade social, e sim por um motivo mais simples do que parece: ao perder a noção da realidade simbólica, na qual o mundo se ampara, o ser humano também perdeu a noção do sagrado e, por conseqüência, suas escolhas são feitas a partir de instintos profanos do que propriamente usando o discernimento moral que o espírito doa ao homem.

Tudo começa com a banda de Danny se apresentando em uma casa de festas em algum lugar distante da Irlanda do Norte. Envolvido com a cantora Dee, Danny é um saxofonista de primeira, mesmo mostrando um certo ar blasé na hora da apresentação. Enquanto a noite não começa, ele se depara com uma jovem surda-muda que, segundo o seu empresário, “veio junto com o lugar”. Os dois se afeiçoam durante os poucos minutos que sobram entre uma canção e outra. Enquanto isso, o empresário da banda discute com uma gangue paga para fazer proteção durante a turnê; o acordo é quebrado, e a gangue rompe com o empresário. Durante a apresentação, Danny também flerta com uma moça recém-casada e, neste momento, apresenta-se a ele três escolhas de vida: a música (com a cantora Dee), a vida doméstica (com a recém-casada) e o mistério (a surda-muda). Danny escolhe a última; logo depois do término da apresentação, ele se encontra com a surda-muda na frente de uma árvore desfolhada (“É a árvore dos desejos”, ele explica à jovem, enquanto os dois escutam o tilintar dos sininhos) e os dois fazem amor no terreno baldio à frente da casa de festas. “Meu Deus, onde você aprendeu isso? Na escola de freiras?!”, diz um surpreendido Danny pela perícia da deficiente. Neste momento, chega um grupo armado numa van. Eles entram na boite, agarram o empresário da banda (que estava esperando por Danny), espancam-no e matam-no com uma rajada de metralhadoras. A surda-muda se aproxima para ver melhor o que está acontecendo e acaba também sendo assassinada. Danny continua escondido e vê a morte dela num silencioso desespero.

Obviamente, o saxofonista fica traumatizado. Pouco a pouco, ele passa a substituir a sua destreza com o instrumento e a música com a habilidade das armas – tudo isso para cumprir um plano irracional de vingança, em que os culpados aparecem do nada, a partir de fatos díspares, e, o mais interessante, aceitam o aparecimento de Danny como algo normal e até razoável – como se ele cumprisse sua função de anjo vingador. É claro que isso só pode terminar em loucura. Em plena Irlanda do Norte, onde o conflito entre protestantes e católicos chegou numa bárbarie única, Danny fica mais deslocado na sua agonia, já que tem ascendência judaica. Para aumentar a confusão, Danny é acompanhado no seu horror por um comissário de polícia chamado Bloom (uma homenagem de Jordan a James Joyce?), que parece saber mais do que aparenta, tem uma tia clarividente que recita poemas a um tal de Nobodaddy (quem conhece William Blake sabe o que é isto) e, como se não bastasse, tem de agüentar a interrogação de Dee sobre sua nova personalidade e o reaparecimento da recém-casada, que estava na noite do crime, com quem tem um breve affair.

Parece trama de comédia screwball, daquelas dirigidas por Howard Hawks, mas Jordan não deixa o ritmo de tragédia cair. Danny confunde a realidade e a alucinação, caindo num permanente estado de sonho. Para ele, declarações feitas a esmo parecem carregadas de sentido, como esta dada pelo comissário Bloom: “Ele é profundo e está por toda parte. Você pode aguentá-lo?”. “O quê?”, pergunta Danny. “O Mal”, responde Bloom. A mesma coisa se dará no final quando, em busca do homem que apertou o gatilho contra a surda-muda, encontra perto dos escombros da boite uma tenda onde um garoto chamado Francie Thompson, considerado “o sétimo filho do sétimo filho”, alega realizar milagres. Ao se deparar com o garoto, Danny o vê com as mesmas roupas de saxofonista que ele vestia e desmaia pateticamente. Ao acordar, encontra um dos policiais que acompanhavam o comissário Bloom (interpretado pelo grande Donal McCann) e descobre que ele foi o assassino da garota. Um estampido vem do nada, e o policial morre, graças à pontaria certeira de ninguém menos que o comissário Bloom. “Como o senhor sabia?”, pergunta Danny, assustado. “Eu não sabia”, Bloom responde. “Você queria que eu fizesse todo o trabalho?”, diz o saxofonista. O comissário apenas faz uma menção com a cabeça: “De certa forma, sim”. Danny cambaleia para fora dos escombros da boite enquanto um vento ruidoso (provavelmente um helicóptero) levanta o pó da terra.

Recentemente, outro filme abordou o mesmo tema – a vingança –, mas sob a perspectiva da família: “Entre Quatro Paredes” (2001), de Todd Field. Para quem não liga o nome à pessoa, Field é o Nick Nightingale de “Eyes Wide Shut” (1999), de Stanley Kubrick, e logo no seu primeiro longa-metragem, mostra ser um notável discípulo do mestre, com um olho acurado para o detalhe de cena e para a direção de atores. A história de “In the bedroom” (o título original) é também o velho clichê de sempre: família perde o filho único numa tragédia, vê que o criminoso não será punido e parte para a justiça com as próprias mãos. No entanto, Field é bem sucedido em seu intento porque consegue tirar todo o subtexto desta trama comum aos olhos do espectador, impondo-o uma reflexão sobre a aceitação da perda e das imprevisibilidades da vida.

A família de Matt Fowler é o exemplo acabado desta impotência frente aos problemas que a vida apresenta, mesmo que eles estejam sob a forma das pernas bem torneadas e do olhar triste de Natalie, mãe divorciada com dois filhos pequenos, e com quem Frank Fowler, o jovem promissor, tem um caso de verão. Das cinco perguntas que são feitas seja à Matt, à sua mulher Ruth e à Frank, quatro são respondidas com um “Não sei”. Esta apatia não vai terminar bem: o ex-marido de Natalie, inconformado com o fato da sua mulher “estar trepando com um garoto do colegial”, mata Frank durante uma discussão com um tiro no olho.

A partir daí, Todd Field faz um mergulho dilacerante sobre os pais tentando lidar com esta perda abrupta. Amparado na interpretação de Tom Wilkinson (a alma do filme) e de Sissy Spacek, o espectador acompanha a vida daqueles pais que tentam purgar a morte do filho a qualquer custo, mas não conseguem. Ruth e Matt passam a se culpar um a outro pela tragédia até o momento em que, ao perceberem que o assassino não será condenado a prisão perpétua (justamente por uma falha no depoimento de Natalie, que alega ter apenas ouvido o disparo e não ter presenciado o crime) e, mesmo sem o devido julgamento feito pela Justiça, decidem pagar com a mesma moeda, matando o sujeito.

Não pensem que será uma vingança catártica, como, por exemplo, a de “Os Imperdoáveis”, de Clint Eastwood. Ali, Eastwood deixa bem claro que quando a ordem do Estado está corrompida pela falta de discernimento moral do ser humano, e quem paga o preço é a liberdade do indivíduo, a solução é reestabelecer a ordem moral através de um ato radical. Em “In the bedroom”, a situação é outra: o casal Fowler sequer questionam o Estado – eles vêem os advogados como sujeitos interesseiros, mas não culpam a ordem vigente. Por isso, eles decidem criar sua própria ordem, mandando às favas toda a imprevisibilidade que caracteriza, afinal de contas, a decisão da Justiça. No fim, o que temos é uma sociedade que não consegue superar suas perdas, e parte para a retribuição desproporcional, esquecendo-se da resignação que implica em aceitar o mundo tal como é, e não o mundo como deveria ser.

A reação feita a partir de um ato de vingança, visando a reordenar um mundo que aparentemente estava em harmonia e onde agora impera o caos, mostra como o ser humano pode atingir níveis insuspeitados de revolta espiritual. Tanto Neil Jordan como Todd Field analisam a vingança como o estopim para uma descida aos infernos e uma permanência eterna na morte que nunca pára de morrer. Talvez seja por isso que o final de “In the bedroom” seja como um soco na cara: quando o personagem de Tom Wilkinson deita na cama e suspira melancolicamente, ele sabe que, mesmo vivo, sua alma está morta. O mesmo acontece com Danny, o anjo vingador da Irlanda que foi apenas manipulado para entrar no reino do Mal. Em ambos o que existe em comum é o fato de terem perdido o elo com a realidade simbólica do mundo e da vida, não tendo mais a capacidade de discernirem moralmente sobre o que se apresenta à sua frente e, enfim, não conseguindo mais fazer uma simples escolha ou tomar uma simples decisão.

“In the Bedroom” pode ser lido à luz dos acontecimentos pós-11 de setembro, mas isso seria reduzir muito a complexidade de uma obra-de-arte. O mesmo não se pode fazer com “Angel”, se alguém quiser comparar com a situação da Irlanda do Norte. Contudo, podemos ver estes filmes como registros de uma época onde, por incrível que pareça, a decadência espiritual atingiu tal ponto que, para muitos, a vingança se tornou um ato de justiça. Assim, uma guerra que poderia ser justa vira um elogio à tirania do Estado, a pena de morte se torna um instrumento legítimo para acabar com a violência e, por fim, a confusão entre os meios e os fins que muitos políticos estão realizando para sanar a “desigualdade social”. Será que estas pessoas esqueceram-se de Deuteronômio, em que Deus disse a Moisés: “Minha será a vingança”?

Pelo andar da carruagem, parece que sim. Vivemos num mundo repleto de mortos-vivos, onde o desespero, como diria Kierkgaard, é justamente não ter desespero nenhum. Ninguém parece saber o quão perto estamos daquela morte que mata de vez porque não é a que nos liberta deste mundo, e sim a que nos faz ficar cada vez mais presos a ele. Onde raios foi parar o mistério da esperança, aquele mistério de um silêncio frio que nos faz lutar até o fim para viver com alguma dignidade? Ninguém aqui é oráculo para dizer onde está, e se alguém fosse – quem teria a coragem de dizer?

I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked
Allen Ginsberg, “Howl”

“Eu sou o Senhor Auto-Destruição”, gritava Trent Reznor na abertura de “The Downward Spiral” (1994), um dos mais impressionantes discos dos anos 90. E ele estava falando a verdade. Gritos, sussurros, silêncios alternados com uma bateria brutal e uma sonoridade eletrônica que remetia aos nossos piores pesadelos, davam ao ouvinte a sensação de que o rock podia captar as sutilezas de uma mente e de um espírito mais do que mórbidos. Reznor fez isso como ninguém na década de 90, a mesma década em que Deus virou uma mercadoria à venda e que a humanidade ficou mais próxima da bestialidade.

Escudado por uma banda chamada Nine Inch Nails, Trent Reznor virou uma lenda viva na indústria fonográfica. Perfeccionista, totalmente obcecado com o ritmo certo de uma canção, Reznor é o tipo do sujeito que gasta cinco anos entre um álbum e outro apenas para fazer o que qualquer artista que se preza deveria fazer: do modo correto e justo. O problema é que Reznor levou a sua arte ao um nível no limite do insuportável – em outras palavras: sua obra é de uma insanidade absoluta, uma jornada pelo pesadelo da alma humana, uma crônica da auto-destruição.

Foi em 1989, com o lançamento de “Pretty Hate Machine”, que Trent Reznor apareceu com letras sobre auto-multilação, sexo pervertido, e todo um catálogo de bizarrices que poderíamos chamar de “masoquismo de boutique”. As canções em si pareciam arremedos de uma mistura entre o gótico dos anos 80 e o tecno que estava surgindo com força total no mundo alternativo. Até aí, nada de novo, e a mesmice continuou com o EP “Broken”(1992), uma obra que era certamente uma evolução em relação a “Pretty Hate Machine”, mas faltava algo que desse uma unidade transcendente ao que Reznor queria realmente falar: a falência espiritual e emocional do ser humano.

Ele atingiria o seu intento com “The Downward Spiral” (1994), uma obra-prima aterradora que contava a história de um homem (o próprio Reznor?) na tentativa bem-sucedida de cometer suicídio, sem antes deixar de quebrar com todos os elos que ele tem com este mundo: família, Deus, amores passados e futuros e qualquer espécie de esperança. Mas isto fica apenas na primeira análise: pouco a pouco, o ouvinte vai percebendo a cada faixa que passa, por trás de cada melodia escondida numa muralha de guitarras ensurdecedoras, que “The Downward Spiral” não era, em hipótese nenhuma, uma glorificação do suicídio, mas sim um estudo do arrependimento. Se na canção “Heresy”, Reznor bradava que “Deus está morto e ninguém se importa/ se existir um inferno, te vejo lá”, como fosse o seu lema filosófico, na última faixa, “Hurt” (uma das músicas mais sombrias já feitas), ele suspira baixinho, afirmando que “Se eu pudesse começar de novo, distante de tudo/ eu poderia me manter por mim mesmo/ eu encontraria um caminho”, culminando numa explosão de microfonia que sugere nada mais, nada menos que o inevitável da morte.

Quando foi lançado no ano de 1994, “The Downward Spiral” provocou polêmicas de todas as ordens. Além de seu conteúdo pertubador, Reznor atiçava ainda mais a mídia ao gravar o álbum na mesma casa onde Charles Manson matou Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, em 1968. Para os jovens americanos – filhotes do Império que não conseguem dominar seus impulsos homicidas -, Trent Reznor & Cia representavam a perda de uma geração que tinha como ídolo outro suicida: Kurt Cobain. Entretanto, é claro que Reznor não queria ser como Kurt Cobain. Sua ambição era outra, e os seus meios eram completamente diferentes.

Cinco anos podem ser uma longa espera, principalmente para um artista que tem de passar pela prova de fogo de superar sua obra anterior. Entre 1994 e 1999, muita coisa aconteceu no mundo da música: o aparecimento de Marilyn Manson (um clone de Alice Cooper, produzido por Reznor e que muita gente acredita ser um gênio porque “ele é um jorrrrrrnalisssssta”, segundo suas fãs mais exaltadas), a chegada de Britney Spears e Christina Aguilera (no fundo, duas caipiras – uma americana e a outra latina – que tentam ser sexys, mas não ativam hormônio nenhum) e a consagração de uma banda inglesa chamada Radiohead, que fez dois álbuns estranhos, gelados, notáveis e incompletos: o artificial “OK Computer” (1997) e o monolito “Kid A”(2000).

Enquanto isso, Trent Reznor se trancava em um estúdio em New Orleans para fazer o sucessor de “The Downward Spiral”. Os críticos se perguntavam: o que ele vai aprontar agora? Era quase impossível que Reznor superasse a perversão e as trevas do álbum anterior. Mas claro que estavam enganados. Em setembro de 1999, Reznor lançava “The Fragile“, um disco duplo que contava a história de um relacionamento que não terminava muito bem. De novo, Reznor mexia em seus temas favoritos: obsessão, niilismo e auto-destruição. No entanto, desta vez ele adicionava um novo tema que o tornava um parente muito próximo do poeta francês Charles Baudelaire: a procura desesperada pela transcendência. Esta procura era causada pela decadência do mundo que o rodeava – claramente simbolizada pela palavra “spleen” (tédio) – e pela desilusão da imagem do ser amado. Se em “The Downward Spiral”, Reznor falava sobre uma única pessoa que se auto destruía, agora em “The Fragile”, a história girava em torno de duas pessoas que queriam acabar um com o outro, através da vingança e da falta de sentido para a vida. Mas, como veremos, Reznor faz que as coisas não sejam tão simples assim.

Tudo começa com “Somewhat Damaged”. “So impressed with all you do, Try so hard to be like you, Flew too high and burnt the wing, Lost my faith in everything” (Impressionado com tudo o que você faz, querendo ser muito como você, voei alto demais e queimei as asas, perdi a minha fé em tudo) – imaginem estas sentenças ditas ao som de uma bateria primitiva, uma guitarra que repete três acordes à exaustão, e o ouvinte não tem nada a fazer a não ser aceitar o mesmo convite de William Carlos Williams na introdução de “Howl” de Allen Ginsberg: “Senhoras e senhores, levantem a barra de suas roupas e sejam bem-vindos ao Inferno“. Os acordes vão se tornando cada vez mais complexos, a bateria adquire nuances, e o som é de uma raiva assustadora; afinal, um relacionamento acabou de ser rompido, e tudo está caindo aos pedaços. “Too fucked up to care any more” (Estou fodido demais para me importar), grita Trent Reznor, mas a raiva não vai abatê-lo. De alguma forma, ele vai continuar, e é na segunda faixa, “The Day The World Went Away”, que a busca realmente começa. Será nesta busca – misteriosa, sombria, possivelmente fadada ao fracasso – que “The Fragile” vai encontrar seu eixo dramático, que girará através de opostos que se complementam: amor e ódio, obsessão e realidade, verdade e mentira, vida e morte, afeto e violência, paranóia e paz, sangue e água, vingança e perdão, Deus e o Diabo. Uma muralha de guitarras entremeada com um coro budista infantil dá um ar épico ao álbum, além da primeira verdade encontrada pelo narrador: “There´s a place that stills remain, It eats the fear, It eats the pain, The sweetest price we have to pay, The day the whole world went away” (Ainda existe um lugar que permanece, ele devora o medo, devora a dor, o preço mais doce que temos de pagar, o dia em que o mundo todo despareceu). Que lugar seria esse?, pergunta-se o ouvinte. Será alguma espécie de paraíso – ou então, um inferno muito pior do aquele que já vivemos?

A terceira faixa, “The Frail”, com sua beleza meditativa, indica ao ouvinte que este não será um simples disco de rock. É uma sinfonia industrial, pensada e executada nos mínimos detalhes; temas musicais da primeira faixa começam a se infiltrar no conjunto da terceira faixa e Reznor vai utilizar desse procedimento nas duas horas e meia que duram o álbum como um maníaco. A intenção é clara: ao retratar (musicalmente) o processo de iniciação espiritual de um indíviduo (ainda não sabemos se esta iniciação vai ser uma ascese ou uma queda), Reznor, através das recorrências musicais e das simetrias, quer nos mostrar que a vida se compõe de ciclos que se desenvolvem como círculos concêntricos. Este colunista sabe muito bem que é muita metafísica para um “mero” disco de rock, mas o ouvinte tem de acreditar que “The Fragile” é uma obra fora de qualquer tempo e classificação, e portanto o próprio Reznor já devia saber desse pequeno problema estrutural.

É o que ele prova nas três faixas seguintes. A serenidade melancólica de “The Frail” dá lugar à revolta de “The Wretched”, uma canção assustadora com um piano mais assustador ainda, no qual Reznor confronta-se com o silêncio de Deus e assume claramente que está partindo para uma vingança contra a mulher que o abandonou. “It didn´t turn out the way you wanted to” (Não saiu como você queria), grunhe Reznor de forma sarcástica, e temos a impressão que ele não hesitaria em explodir a moça em mil e um pedaços. Grave erro – na canção seguinte, Reznor nos surpreende com “We´re in This Together Now”, uma fantástica, pesada e desesperada balada de amor que cita sem nenhuma vergonha “Heroes” de David Bowie: “You´re the queen and I´m the king, Nothing else means everything” (Você é a rainha e sou o rei, e nada mais importa), com guitarras em solos alucinados, duas baterias acompanhando um ritmo intrincado, cheio de pausas e quebras que revelam o amor do narrador pelo ser amado. O que era para ser uma nêmesis se revela uma musa, ainda que uma musa perversa, e por isso mesmo frágil. Este é o mote da próxima canção, que tem o nome do álbum, “The Fragile”, que começa de maneira fabulosa: “She shines in a world full of ugliness, She matters where everything is meaningless, Fragile, She doesen´t see her beauty, She tries to getaway, Sometimes where just that nothing seems so easy, I can´t watch her slip away” (Ela brilha em um mundo cheio de destruição, ela é o que importa quando tudo não tem sentido, Frágil, ela não vê a própria beleza, ela tenta escapar, algumas vezes quando tudo parece tão fácil, não posso ver ela escapar), para explodir num refrão único:

I won’t let you fall apart“. (Não vou deixar você se destruir)

Ah, então perguntará o ouvinte (e o leitor deste ensaio), o Frágil do título é a mulher? Numa primeira vista, tudo aparenta que sim. Mas Reznor joga com as aparências, e numa jogada de mestre, ele mistura paranóia e afeto em uma única estrofe, embalada por uma sequência de notas desafinadas no piano e uma série de ruídos sinistros:

We´ll find a place to go where we can run and hide,
I´ll keep a wall where we can keep them from the other side,
But they keep waiting and picking, and picking, and picking
“.
(Nós encontraremos um lugar onde possamos correr e nos esconder,
Vou construir um muro que nos separará do outro lado,
Mas eles ficam esperando e pegando, pegando, e pegando)

A fuga da realidade se confunde com a busca por um lugar mais puro e por uma espiritualidade mais elevada, e a confusão chega ao máximo quando no final Reznor grita: “I was like you” (Eu era como você). Chegamos à primeira reviravolta da história: o narrador se projeta na mulher amada de tal forma que tanto ele como ela são frágeis. Ao assumir a fragilidade humana da qual faz parte, o narrador parte para um outro estágio da sua busca, um estágio em que o que era uma vingança vira uma peregrinação na qual não se pode mais voltar para trás.

Daí em diante Reznor não desperdiça seu arsenal de surpresas. São trevas alimentando-se de trevas. A instrumental “Just Like You Imagined” começa com ruídos que parecem do fundo do mar (isto terá um sentido dentro em breve); a bateria continua violenta, mas uma camada de guitarras que aumentam sem parar vão encobrindo os gritos de Reznor (sim, leitor, ele grita e sussurra tanto neste álbum que não seria um exagero chamá-lo de Ingmar Bergman do rock), até uma explosão que nos faz acordar de um certo torpor. Este torpor é o do próprio narrador. Ele acorda de um sonho estranho e percebe que o sonho continua na realidade e não há como fugir. Já estamos na faixa “Even Deeper”, uma canção de batidas eletrônicas, notas indianas, e com aquele ruído do fundo do mar entrando no inconsciente do ouvinte. A letra fala sobre a impossibilidade de sentir algo importante, de querer ter aquilo que não há como agarrar. Mas o sujeito reconhece que, de qualquer maneira, subir o poço não é a sua melhor escolha naquele momento. Logo, ele vai descer até o fundo – e é o que vai fazer no final do primeiro CD. Os toques orientais de “Even Deeper” se dissolvem em uma marcha mecânica, e as guitarras fazem as vezes de trompas e clarinetes, além dos urros masoquistas que escutamos nos auto-falantes. É o tema de “Pilgrimage” e aqui Reznor explicita de vez o sentido de iniciação espiritual do narrador. A peregrinação em busca dessa mulher (ou o que ela representa) será dura, cruel, e, se puder, sem nenhuma gota de humanidade.

Mas nem sempre as coisas saem como queremos. “Pilgrimage” termina abruptamente para dar lugar à “No You Don´t” e outra vez Reznor deixa a situação um pouco mais clara. A mulher amada não é uma simples sacana ou uma simples coitada que precisa ser salva; ela é uma louca, maluca de hospício, digna de andar com camisa de força. “Baby´s got a problem, Tries so hard to hide, You keep running in circles, because everything is dead on the other side” (A querida tem um problema, tenta escondê-lo a qualquer custo, você fica correndo em círculos, porque tudo está morto no outro lado) – este outro lado é a alma da mulher, totalmente corrompida pelo desprezo ao mundo e o narcismo de sua personalidade (“You think you will have everything, but no you don´t” – Você pensa que tem tudo, mas não, você não tem). Reznor não hesita na fúria, e o barulho dessa canção é proposital para o que vem a seguir: simplesmente uma das coisas mais bonitas que a Humanidade já produziu. Estamos falando de “La Mer”, e é aqui que tudo começa a fazer sentido. O narrador está sentado no pico de um morro. Ele vê o mar e seu horizonte, o símbolo máximo do Absoluto e uma paisagem que estimula à meditação. O que fazer depois que tudo parece estar perdido? Um piano delicado vai se intensificando com o violão e o baixo, além de uma voz feminina, em francês, suspirando que “o mar me abraçou agora e agora nada irá me impedir”. A voz seria a mulher? Talvez sim, talvez não. Seria uma lembrança do narrador? Não. Em “La Mer” ( inspirado na composição de Debussy) o tema das personalidades volta: o narrador é a mulher e vice-versa. É como disse Fernando Pessoa: “Torna-se o amador a coisa amada”. Mesmo em sua perversidade, a mulher é um objeto de redenção para o narrador que quer amá-la e destruí-la ao mesmo tempo. Então, enquanto o piano vai dedilhando sua melodia, e o baixo e a bateria acompanham num ritmo dançante (parecido com as ondas do mar), entra uma guitarra de uma nota só, altamente distorcida. Quando se nota o efeito que essa distorção faz na compreensão do álbum, percebe-se que era aquela distorção que o Sonic Youth procura há anos e ainda não encontrou. O impacto é devastador; é como se o mar inteiro tivesse engolido o ouvinte, a baleia de Jonas não deixando ninguém escapar nem por um segundo.

A descida toma um ritmo vertiginoso com “The Great Below”, a última faixa do primeiro CD. Os mesmos ruídos que acompanhavam o ouvinte desde “Just Like You Imagined” tomam forma defintiva para dar espaço a Reznor e deixam-no cantar uma das estrofes mais amargas já feitas:

Staring at the sea,
Will she come?
Is there a hope for me,
After all i´ve said and done,
Anything at any price,
All of this for you,
All the spoils of a wasted life,
All of this for you
“.
(Olhando para o mar,
será que ela chegará?
Há alguma esperança para mim,
depois de tudo o que eu disse e fiz,
Tudo por qualquer preço,
tudo isso por você,
Todos os espólios de uma vida perdida,
tudo isso por você)

All the spoils of a wasted life” (Todos os espólios de uma vida perdida) é algo terrível para dedicar ao ser amado. Sua herança e seu carinho são nada mais, nada menos que perda e remorso. Construído meticulosamente num crescendo, “The Great Below” leva Reznor num desepero tão grande que parece que o ouvinte vai explodir junto com ele ao escutar que “o meu destino está ficando claro, o tempo está correndo, as correntes tem o seu sentido, e eu desci da Graça, para os braços da tormenta, e tomarei o meu lugar na grande imensidão”. Seria o primeiro indício de suicídio? Não, pois, como veremos, aquela mulher que ele quer destruir é também a razão de sua existência. A prova? O final de “The Great Below” quando ele fala: “I can still feel you even so far away” (Eu ainda posso sentir você, mesmo estando tão longe). Para o narrador, é uma obsessão que dá sentido à sua vida, e não a realidade. Ao sentir a mulher na distância ele não quer falar que é delicado e sensível. Sua “sensibilidade” tem um nome: destruição. E agora que chegou à conclusão que ele foi renegado pela Graça divina, tudo que lhe resta é pôr o seu plano em prática e agir de acordo com sua maldição.

Movido pelo ódio e por um estranho afeto, o narrador decide que vai até o fim na sua experiência, mesmo que seja rastejando. Assim começa a segunda parte do CD, com “The Way Out is Through”. Se a primeira parte é a mais longa, com 56 minutos de duração, a segunda é curta, com 48 minutos, e isto também tem um sentido: o CD 1 é muito mais reflexivo, no qual o narrador tenta compreender o que aconteceu com ele; no CD 2 ele parte para a ação, e por isso a sua velocidade. Em “The Way Out is Through”, Reznor começa devagarzinho, canta bem baixo (é impossível escutá-lo a não ser com headphones) para deixar a distorção da guitarra dominar a textura da canção (a mesma distorção de “La Mer”, só que muito mais elaborada, se isto era possível) até a explosão de barulho que acaba com qualquer auto-falante. “We feel so small, but still we crawl” (Nós nos sentimos tão pequenos, mas nós ainda nos arrastamos), berra o narrador. O silêncio volta e aos poucos um violino aparece, misturando notas e melodias de “The Frail” e de “La Mer”, mas desta vez numa base mais rítmica. É “Into The Void” com Reznor brindando o ouvinte com uma frase bem ambígua – “Trying to save myself but myself keeps slipping away” (Tentando salvar a mim mesmo mas fico me escapando, numa tradução bem capenga). A salvação da alma está cada vez mais longe para o narrador, mas ele ainda acredita nela – mesmo que ninguém possa ajudá-lo, assunto abordado em “Where Is Everybody”, canção em que Reznor tenta fazer uma paródia de Beck, terminando por entrar num humor negro que apenas poucos gostam.

“Where Is Everybody” é sobre abandono emocional, o primeiro passo rumo à loucura, e a loucura, quando se infiltra no Espírito, fica marcada como um sinal forjado no fogo. A assustadora instrumental “The Mark Has Been Made” demonstra o poder de Reznor em captar, através da música, a alma torturada de uma pessoa. Uma bateria forte, um violão e uma guitarra que dialogam-se com notas quebradas e acordes desafinados de propósito, fazem o ouvinte viajar pelos meandros de uma mente que já está condenada. A pertubação aumenta ainda mais no final da música, em que, por cerca de 12 segundos, escutamos uma voz que vem como se fosse do fundo do mar e que diz num tom agoniante: “I´m getting closer, I´m getting closer… all the time” (Eu estou chegando perto, eu estou chegando perto… o tempo todo). A procura desesperada pela transcendência se resume nesta sentença. O narrador quer ultrapassar a crueza do mundo em que vive, mas sempre está na fronteira. Essa condição de renegado, de “homem preso ao chão por causa das asas de chumbo” (para citar Baudelaire) é o que leva ao desespero consigo mesmo e com os outros. Por isso, em seguida vem a violência de “Please” e “Starfuckers, Inc.”.

“Please” é o relato cru dos dois amantes se reencontrando e tendo a trepada mais infeliz de todos os tempos.”Watch the white turn to red” (Veja o branco se tornar vermelho) – esta é uma imagem que não precisa de maiores comentários – , fala um Reznor resmungão, que afirma que a amada “nunca vai ser suficiente para me preencher”. “Eu apago o medo”, mas o medo continua imperando nesta relação que tomou ares sadísticos (no sentido do Marquês de Sade, ou seja, o sexo se tornando uma arma de manipulação), um medo que vai ser o início da violência em “Starfuckers, Inc.”. “I play a new game, It´s called insincerity” (Eu jogo um novo jogo, ele se chama insinceridade), anuncia o narrador que agora faz parte do “clube dos mais bonitos e dos escolhidos”, as “estrelas fodedoras, incorporações” do título. O sarcasmo e a ironia nesta canção são evidentes, e apesar de se integrar perfeitamente à concepção do álbum, Reznor também satiriza o seu discípulo bastardo, o tal do jornalista chamado Marilyn Manson, homenageando-o com uma citação de Carly Simon (“You´re so vain, did you think this song is about you?“,Você é tão vaidoso, achava que essa canção era sobre você?) e terminando a música com um sampler muito mal feito de um show do Kiss, sujando de propósito a bateria com os urros de uma platéia que parece parabenizar o que o narrador fez com a mulher (a saber, ou pelo menos é o que Reznor dá a entender com a frase “And when I suck you off not a drop I´ll go to waste” [E quando eu te chupo não vou perder sequer um pingo], ele pratica um sexo oral um tanto quanto forçado).

Então vem a grande reviravolta da história, marcada pela instrumental “Complication”. O narrador finalmente conseguira se vingar da futilidade e maldade da mulher. Missão cumprida? Nem um pouco. Reznor dá a pirueta definitiva ao mostrar que, apesar da vingança executada, o narrador não consegue esquecer a moça. A obsessão atingiu um ponto de não-retorno. Não há como fugir – ele está completamente encurralado. O próprio afirma isso quando canta que “There´s always a way to forget, once you know the way to find out” (Há sempre uma maneira de esquecer, desde que você saiba o caminho para esquecer) na fantástica “I´m looking forward to join´you, finally”, em que uma bateria tirada diretamente do “Bone Machine” de Tom Waits se contrapõe ao um acompanhamento minimalista. Seu único esquecimento é se desfazer em pedaços, “tentar arrumar tudo, e destruir depois só pela diversão de acabar com tudo”. “There´s no place I can go, There´s no place I can hide” (Não há um lugar que eu possa ir, não há um lugar que eu possa me esconder), se desespera Reznor ao ver que sua procura terminou muito mal na canção “The Big Comedown”. O fim chega a ser niilismo puro, como se vê em “Underneath It All”:

All I do I can still feel you,
Kill my brain yet you still remained
Crucified after all I tried you are still inside
All I do I can still feel you
You remained
I´m stained

(Tudo o que eu faço ainda posso te sentir,
Mato minha mente e ainda assim você permanece,
Crucificado depois de tudo você continua aqui dentro,
Tudo o que eu faço ainda posso te sentir
Você permanece
Eu fico marcado)

A marca já foi feita, a mancha se impregnou na alma. Ainda assim, o próprio Reznor dá o seu sentido próximo a essa experiência com o epílogo “Ripe (Decay)”. Uma longa música instrumental que dá uma sensação de súbita paz e estranha serenidade para uma história tão atormentada. Seria o fim definitivo da procura? Teria um fim? E se tivesse fim, esta procura teria sido uma iniciação satânica, já que nada alcança uma síntese, uma perfeita e harmônica unidade das coisas? Ninguém aqui é doutor em teologia ou padre para decidir isto, muito menos Trent Reznor. A única coisa que sabemos é que este é um caminho que não vai para a frente nem para trás, ou para cima ou para baixo. É uma espiral, uma complicada espiral que adquire vários sentidos conforme as várias vezes que é escutada. Sua complicação se dá porque o disco termina abruptamente, como um choque. Seus últimos acordes são o do início de “Somewhat Damaged”, a primeira canção do CD 1, tocados de trás para a frente. A espiral volta para o seu ponto de partida, mas a partida é também o fim (o que nos faz lembrar o T.S. Eliot dos “Quatro Quartetos”: “In my end is my beginning, in my beginning is my end”[ O meu fim está no meu começo, o meu começo está no meu fim]). O que importa é que o narrador e o ouvinte passaram por essa aventura juntos, mesmo que ela terminasse (?) com decadência. A redenção não é negada, ela está lá, no céu que é a tampa da marmita onde vive a humanidade, mas são poucos que podem alcançá-la. O importante é a procura em si, não o término dela. A loucura, a obsessão e a maldade fazem parte da natureza humana, e temos que aceitá-la, justamente para evitá-las. Ao fazer isso, aceitaremos a fragilidade de nossa existência e, por incrível que pareça, ficaremos mais fortes, aptos para receber a Graça que merecemos e sair da imensidão do inferno em que vivemos.


ERRATA

No meu artigo da semana passada, sobre Paulo Francis, cometi uma confusão em torno de uma conversa minha com Pedro Sette Câmara, em que eu escrevi que ele teria me informado que Francis copiava os programas do Metropolitan Opera House para fazer seus comentários sobre música e ópera na coluna “Diário de Corte”. Sette Câmara, na verdade, me disse que era uma opinião dele que isso acontecesse já que havia semelhanças entre os textos dos programas e os textos de Francis, mas nunca fez uma comparação minuciosa para comprovar tal fato. Para esclarecer a confusão provocada por mim e da qual me desculpo entre os leitores de O Indivíduo, reproduzo abaixo o e-mail de Pedro Sette Câmara:

“Caro Martim,

Não me recordo de ter dito que Paulo Francis copiava os programas do Metropolitan, e sim de dizer que, para mim, ele tirava todas as informações que publicava em sua coluna de lá. Há uma grande diferença entre copiar as informações (vamos dizer que ele omitia quem eram suas fontes) e copiar as palavras; além disso, eu nunca pus um texto de uma “Playbill” ao lado de um “Diário da Corte” para fazer uma comparação. Portanto, não gostaria que se atribuísse a mim, ainda mais publicamente, a “informação” de que Paulo Francis era um plagiário de programas de teatro.

Pedro Sette Câmara”

Melhor para Francis, que não fica com a pecha de plagiário, pior para mim, que não soube escutar direito uma simples conversa.

O farrapo que se encerra?

fevereiro 25, 2010

Dizem que ofendo as pessoas. É um erro. Trato as pessoas como adultas. Critico-as. É tão incomum isso na nossa imprensa que as pessoas acham que é ofensa. Crítica não é raiva. É crítica. Às vezes é estúpida. O leitor que a julgue. Acho que quem ofende os outros e os leitores é o jornalismo em cima do muro, que não quer contestar coisa alguma. Meu tom às vezes é sarcástico. Pode ser desagradável. Mas é, insisto, uma forma de respeito, ou, até a irritação do amante rejeitado“.

Paulo Francis sobre Paulo Francis

Paulo Francis foi a prova definitiva da maldição que atinge o jornalista brasileiro: o aprisionamento do tempo. Obrigado a ter de comentar os assuntos do momento com a brevidade que o momento exige, Francis vivia numa encruzilhada para alguém com vastas ambições intelectuais. Mesmo para quem não o conhecia pessoalmente, e fizesse uma sutil análise psicológica desta personalidade complicada que foi Franz Paul Heinbron, estava claro que seu alter-ego (pois é o que Paulo Francis sempre foi) era uma fachada para o escritor que tentava surgir em cada linha, parágrafo e palavra de suas colunas.

Sua morte aliviou a burrice de muita gente. Para mim, no entanto, foi um fato lamentável. A primeira coisa que pensei foi: “Agora vai ser díficil ter um domingo que preste”. Domingo era o dia de Paulo Francis. Sabíamos que no Caderno 2 haveria o seu “Diário da Corte”, e que no canal de TV paga GNT veríamos “Manhattan Connection”, programa em que Francis dava o ar da graça, junto com Lucas Mendes, Caio Blinder e Nelson Motta. Na verdade, fui um fã tardio de Francis. No início, segui o caminho de muita gente – “Paulo Francis é um ignorante sem nenhuma educação” (insulto que, por seu pleonasmo, é um insulto à língua portuguesa). Mas, num domingo, li sua análise sobre Eduardo “Mogadon” Suplicy, um desses textos que ficam par a par com uma sátira de Swift, Mencken, ou Millôr Fernandes. O apelido “mogadon” se devia porque o senador era tão lento em seu raciocínio, e tão absurdo em suas propostas que ele só poderia estar tomando um tranquilizante com este nome, muito conhecido nos anos 50 no Rio de Janeiro, e que se aplicava em cavalos e mulas para acalmá-los. Mais cruel, impossível – mas não menos brilhante.
Este era um pequeno exemplo da qualidade que Francis tinha e que foi o que o tornou um grande jornalista: ele falava o que todo mundo pensa, mas tem medo de dizer. A expressão “não tem papas na língua” fica marcada na carne ao lembrarmos daquele sujeito de óculos de garrafão e voz de embriagado. E quando se fala que não tinha papas, entenda-se que ele podia falar de tudo, de um segundo para o outro, sem avisar. Lembro-me dele, em um de seus flashs no Jornal da Globo, chamando Bill Clinton de “Mr. Jeca”, e imediatamente fazendo uma ode ao verão de Nova York, cantando “Summertime” engraçadissímo.

Claro que essa figura cartunesca dava margem para piadas e assim quem era pedra acabava virando vidraça. No entanto, nunca teve um sinal de rancor de seus gozadores – dizem até que ele dava gargalhadas quando via a imitação dos humoristas do Casseta & Planeta. Seu senso de humor aparecia mesmo nos momentos mais tensos. Em 1964, nos primeiros dias de abril, enquanto os esquerdistas se desesperavam sobre quem seria preso ou não, Paulo Francis, trotskista empedernido na época, resolveu se esconder na casa de uma amiga, acompanhado por ninguém menos que uma garrafa de Queen Lace, os diários de Samuel Pepys, “Ana Karenina”, de León Tolstói, e “Três teorias sobre a psicanálise”, de Sigmund Freud. No meio de sua reclusão, Claudio Abramo, então editor da Folha de São Paulo, chamou Francis para procurar um fotógrafo que poderia estar preso. Sem saber o que fazer, ele aceitou a aventura. Ao chegarem no bairro onde o fotógrafo morava, Abramo disse que não sabia onde ficava a casa dele. Começou a gritar: “LENINE! LENINE! ONDE ESTÁ VOCÊ?”. Francis percebeu que os berros do amigo estavam provocando uma algazarra desconfortável. Apenas arrumou os óculos na ponta do nariz e resmungou: “Você acha apropriado gritar este nome na atual ocasião?”.

O humor de Francis era um resmungo, uma forma de ácido súlfurico que não o tornava um Boca do Inferno Parte Dois porque, parodiando o odioso Che Guevara, “tentava não perder a ternura”. Quem perdia a ternura eram seus inimigos e desafetos – de Tônia Carreiro à Petrobrás, vulgo Petrossauro. Francis foi responsável por deixar Paulo Autran, um homem relativamente calmo, irritado ao defender Carreiro de uma crítica teatral mordaz, em que escreveu: “Tônia é uma beleza de primeiro mundo, mas tem um talento de quinto”. Já a Petrobrás o ameaçou com um processo de indenização por dano moral, de acordo com as leis dos EUA, pedindo a absurda quantia de 100 milhões de dólares por causa de suas críticas à empresa estatal, o que acelerou o ataque cardíaco (erroneamente diagnosticado como uma mera bursite) que o fulminou em fevereiro de 1997.

Sua arte de fazer inimigos era tirar o máximo de proveito deles, o que o tornava, de certa maneira, uma espécie de charlatão. Em uma conversa com Pedro Sette Câmara, soube que Francis copiava o programa do Metropolitan Opera House quando se arriscava a escrever sobre ópera ou concertos de música clássica – e isso ficava claro na simples comparação de sua coluna com o texto do Met. Uma certa concessão necessária para alguém que gostava de fazer jornalismo, mas acreditava que seu negócio era literatura.

Ainda assim, nunca foi um mestre do estilo. Tinha a maldita mania de iniciar sentenças com pronomes relativos e, muitas vezes, parecia que escrevia sob efeito de um Seagram´s doze anos (leiam o seu confuso prefácio ao livro “12 Ensaios”, de Edmund Wilson). No entanto, havia uma sensibilidade bruta em sua prosa, algo nitidamente tomado das influências de Dostoiévski e Nietzsche, que exibem uma força infelizmente nunca lapidada pelo tempo. Observem este trecho de sua autobiografia “O afeto que se encerra”:

“Durante seis dias vi meu irmão mutilado, sofrendo o diabo, no excelente hospital de São Paulo, cujo nome esqueço, especializado em queimaduras. Se sobrevivesse, Fred perderia um braço, estropiado, já ficara cego de um olho. Os médicos me explicaram que dependia da capacidade dos rins de Fred que ele não morresse, ou seja, da eliminação das toxinas provocadas pelas queimaduras. Fred teve falhas nos rins. Eu segurava a perna dele quando deu aquele último arranque, duro, em que depois o tormento de nos sabermos vivos e vulneráveis se extingue. Antes de morrer, beijei-o a primeira, única e última vez, na testa. E pela primeira vez na minha vida consciente, o filho morto, abracei meu pai”.

Francis conta o suspiro derradeiro de seu irmão Fred, morto em um acidente de avião que o levou numa luta paranóica de mais de vinte anos, já que, para ele, a empresa de aviação Cruzeiro do Sul foi a principal assassina. Este acontecimento marcou sua vida de tal forma que mesmo no fim dela, ainda falava sobre o irmão e o acidente. Foi também o momento que se aproximou do pai, Adolpho, homem muito distante, pois ambos se empenharam na apuração do desastre. Quando o laudo concluiu que foi uma “falha humana”, Francis não se conformou, e em suas colunas no jornal “Última Hora”, “desceu o sarrafo na Cruzeiro do Sul”. “Minha intenção era destruir a ‘reputação’ da Cruzeiro, processá-la criminalmente e, se possível, levá-la à ruína. Meu pai se sentiu mal, na opinião dele, em ‘explorar o cadáver’. Parei somente por insistência dele, já bastante doente na época e carregado de culpas”, escreve em suas memórias. O que o episódio mostra, sobretudo, é a capacidade de Francis de se indignar, de não deixar arrefecer o espinho cravado na carne – algo que os jornalistas estão perdendo nos dias atuais. Junte isso a um vasto conhecimento intelectual e o leitor tem nas mãos uma bomba-relógio com os ponteiros desaparafusados.
Mas não era o lunático de plantão. Conforme o passar do tempo, Francis foi se amansando, mesmo com seu famoso ditado ao afirmar que estava “tecnicamente morto” por causa do baixo nível da cultura ocidental. Seu resmungo, de novo, passava a ser um riso, mas um riso que lamentava uma perda dilacerante. Não era somente a perda do irmão, nunca explicada; era também a perda do projeto falido, do projeto em que a literatura havia se tornado um mero sonho que não conseguiu abrigar as ambições de Franz Paul Heinborn. Em seu prefácio ao livro “Waal – O Dicionário da Corte de Paulo Francis”, organizado por Daniel Piza, ele escreve: “Confio em que meu humor me salve, quer dizer, que me facilite o que der e vier. Enquanto há vida se vai levando. Aproveitei o máximo. Devo dar graças ao destino que me permitiu viver confortavelmente do fruto do meu trabalho, que é mental. Minha cabeça é meu produto primário e minha indústria. Saí da caverna. É minha satisfação que partilho com leitores de cabeça limpa”. Há nesta declaração quase testamentária, um tom resignado, de ter aceitado os seus limites, de ter, enfim, compreendido que demolir os assuntos do dia-a-dia era uma forma de escapar da existência de uma ameba. Seu jornalismo era pedagógico nesse sentido, em que o leitor podia não gostar de suas opiniões, mas sabia quais eram elas e podia compará-las com as suas próprias – criando assim alguma síntese. Mas como todo jornalismo feito com vigor, caía no bom e velho beco sem saída da progressiva amnésia, e não é à toa que, para a nova geração de jornalistas, o nome Paulo Francis é algo distante, quase inacessível, prestes a se dissolver no tempo, pronto para se tornar um farrapo humano.

Isso é um destino comum no Brasil, um país que age como a porca que come os seus filhos. Além de dois volumes autobiográficos – “O afeto que se encerra” e “1964 – Trinta anos esta noite” -, Paulo Francis publicou dois volumes de ensaios, escreveu dezenas de prefácios, milhares de colunas, e três romances – “Cabeça de Papel”, “Cabeça de Negro”, e “Cabeça”, este último nunca publicado. É o projeto literário mais fracassado da história intelectual brasileira. Francis queria ser o Dostoiévski dos anos de chumbo e acabou sendo um romancista medíocre. Uma história sem pé nem cabeça, um estilo verborrágico, cheio de situações caricatas de pornografia, alusões pedantes – todos os motivos que fizeram os críticos de Francis urrarem de felicidade estão lá. Ele defendeu sua obra com unhas e dentes,alegando que tinha criado um delírio e devia ser interpretado como tal, mas não tinha jeito: os livros eram muito ruins.

A sensação de fracasso como romancista permeou todo o seu trabalho jornalístico nos anos seguintes. É a época do último Francis, que decide se auto-exilar definitivamente em Nova York, financiado pela Rede Globo, e dá constantes bananas ao provincialismo brasileiro. “Somos um país de jecas”, afirmava. Contudo, não hesitava passar as férias de verão no Rio de Janeiro, onde sempre era convidado para uma entrevista no Roda Viva da TV Cultura. Durante as férias de Natal ia sempre a Paris, onde se extasiava com a beleza da catedral de Notre-Dame e adorava escutar uma missa em latim. Para quem era fã de Trotski, isso era uma atitude assombrosa. Mas sabendo que Francis nunca foi dogmático em suas opiniões, apesar do suposto radicalismo, o que era mais inusitado era dar uma volta de 360 graus, e de socialista sonhador se tornar o mais implacável dos liberais – tão implacável que até Roberto Campos se assustava com o que Francis dizia.

Conforme o leitor lê este texto, as contradições que impulsionavam a vida de Francis são claras. Ele adorava declamar Walt Whitman em pleno Manhattan Connection, para confundir seu colega sempre certinho Caio Blinder: “I contain multitudes”. Esta variedade de personalidades dentro de uma máscara podia chegar a uma esquizofrenia estéril, mas o que lhe dava a sua unidade era um implacável senso de determinação. Ele sabia o que queria, sabia como chegar ao que queria – no entanto, só não conseguiu o que queria. Eis aí a tragédia de sua vida, a encruzilhada que transforma uma suposta caricatura numa tristeza ímpar. Na sua impossibilidade, Paulo Francis não é apenas o paradigma do jornalismo sem concessões; ele é um modelo da consciência do fracasso, mas também de sua superação.

O jornalismo é o relato dos fatos de um cotidiano que, um dia, torna-se-á história. O crítico cultural é obrigado a refletir sobre eles no calor da hora, sem a possiblidade de ver algo mais além do tempo atual. Os grandes jornalistas, como Samuel Jonhson, Jonathan Swift, George Bernard Shaw, H.L. Mencken, Edmund Wilson, Robert Hughes, Otto Maria Carpaux, Tom Wolfe, Guy Talese, Norman Mailer, Truman Capote, Gabriel Garcia Márquez e o próprio Paulo Francis, são capazes de ver os fatos e analisá-los atravessando o presente, independente de suas formações ideológicas e intelectuais. Há uma sub specie aeternis que liga estes sujeitos tão díspares, mas também um compromisso formidável com a inteligência do leitor. Eles nunca subestimaram o companheiro silencioso que ficava no outro lado da página, e o que mais queriam era que a irritação os consumisse, pois, como diria Philip Roth, “você precisa ficar irritado para começar a ver alguma coisa”. Francis exibia uma irritação considerável com o estado de coisas, e quando trocou seu esqueridismo por uma posição mais liberal, ele explicou sua decisão da maneira mais clara e direta possível: “O esquerdista é burro”. Para este tipo de jornalismo, a burrice é sinônimo de morte, e a pior morte possível: a do espírito. Mesmo com seu ceticismo (“Faz bastante tempo que me convenci de que a vida não tem pé nem cabeça, que religião é uma tentação emocional resistível, porque não faz sentido. E ideologias, waaal”), em contrapartida promovia uma liberdade de consciência que não deixava nada a dever a um Voltaire. “Não mudei muito desde que percebi que podia pensar sem que fosse mero reflexo de uma necessidade”, escreveu naquele prefácio curto e revelador de “O Dicionário da Corte” em 1996. “Olhar para si próprio como alguém de fora é uma sensação saborosa; de poder? Em parte sim, mas é também um prazer sensorial, estético e filosófico. O grande momento da minha vida foi quando percebi as possibilidades da imaginação. Foi como o macaco de 2001 ao descobrir o uso agressivo de uma ossada animal. Escritores me revelaram maneira de ver, de entender, de formular questões de comportamento e o próprio ato de pensar. A metáfora de Platão sobre a caverna, onde pobres diabos se adaptam à sua condição sem sequer notar o mundo rico e variado às suas costas, é o princípio da alfabetização intelectual”.

Francis aceita a complexidade do mundo e a única forma de retratá-la é através das “possibilidades da imaginação”. De novo, a ambição literária invade as brechas do seu projeto jornalístico. O fato de ter sido um escritor frustrado não o torna um fracassado convicto – talvez seja justamente por ter o dom particular da determinação de ultrapassar a prisão do tempo, característica marcante dos homens do espírito, que faz o seu jornalismo uma espécie de literatura. Nesse sentido, Paulo Francis pode ser considerado o nosso Karl Kraus. Seus chistes, boutades, e opiniões hilárias, fazem parte do repertório popular e qualquer um com dois dedos na testa vai querer saber qual era a sua visão de um determinado assunto. Mas, atualmente, são poucos que ainda têm este hábito. Com sua morte, Paulo Francis foi vítima da lavagem cerbral esquerdosa, que, pouco a pouco, coloca-o no nível de um pagliacci. Seus leitores sabem que ele foi mais que isso; contudo, o tempo aprisionou a obra de Francis em uma jaula estranha, em que a procura pela liberdade intelectual se torna a busca pela superação de seus limites, e esta superação fica no meio fio entre o esquecimento e a permanência da memória.

Francis era um sujeito divertido que podia cantar “Chiquita Bacana” com Nelson Motta com a maior cara do pau, mas a citação que sempre me lembrei foi quando ele criticou o filme “Razão e Sensibilidade”, com Emma Thompson, baseado no clássico de Jane Austen. Fã da escritora inglesa, Francis deu uma bronca em Caio Blinder e Lucas Mendes ao ouvir deles que Austen era boba e ingênua por escrever romances sobre moças e moços apaixonados, e seus amores não correspondidos. “Vocês são uma bestas!”, ele resmungou com um brado, “Não há dor mais cruel e profunda que a do amor em vão”. Era um momento de poesia no meio de um programa que sempre foi uma conversa de botequim. Com aquela resposta, pude ver, pela primeira vez, a humanidade trágica de Paulo Francis. Talvez ele fosse mais um sujeito que cantasse a famosa reclamação de Antonio Maria: “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire”. Mas também era claro que não queria ser amado indiscriminadamente (afinal de contas, vivia muito bem com sua companheira, a também jornalista Sonia Nolasco). Queria ser apenas lido – era, como o próprio disse, “uma forma de existir”.

A obra-prima de Franz Paul Heinborn foi os seus quinze anos de “Diário da Corte”. Ao contrário de Karl Kraus, não há uma novela, um romance ou uma peça teatral que possa dar uma unidade de seu pensamento. O que se tem são retalhos brilhantes, mas, ainda assim, retalhos. Nada mais jornalístico, nada mais humano. Seria ele um mero farrapo? Yeats dizia que o intelecto do homem tinha de escolher entre a perfeição da arte e a desordem da vida. Francis queria a primeira, e acabou aceitando a segunda. Isso não o torna uma colcha de panos pobres; torna-o, isso sim, surpreendentemente próximo de nós. Por isso, não devemos encerrar nosso afeto por ele e jogá-lo na vala do esquecimento. Com todas as suas falhas, Paulo Francis, no fim, nunca perdeu sua dignidade. E na hora da realidade implacável isso é a única coisa que importa, e é também algo que o jornalismo brasileiro está prestes a perder. Waaal, que emocionante, diria ele deste texto. Mesmo com sua ironia cortante, a única resposta possível para recuperar esta mesma dignidade é dizer apenas: “Obrigado”.

A montanha dos sete abutres

fevereiro 25, 2010

O picadeiro do Fórum Social Mundial em Porto Alegre discutiu vários temas, como o imperialismo, a insegurança, a globalização, os pobres, os ricos, os infelizes e os felizes, mas em nenhum momento alguém disse uma palavra sobre um nome: Daniel Pearl. Jornalista do Wall Street Journal, Pearl foi seqüestrado por um grupo de terroristas paquistaneses que exigiram a libertação de presos no campo militar americano de Guantanamo, Cuba, além de um resgate de U$$ 2 milhões. Se os pedidos não fossem aceitos, eles matariam o jornalista em vinte e quatro horas.
Enquanto escrevo este artigo para “O Indivíduo”, Pearl está aparentemente vivo, depois de dias desesperadores em que os terroristas enviaram e-mails para a redação do Wall Street Journal, afirmando que ele já estava morto. Horas depois, chegou uma outra mensagem, informando que “Pearl está (talvez) vivo. Façam seus maiores esforços para libertá-lo”.

Não bastasse a situação complicada, os sequestradores paquistaneses resolveram brincar de jogo da alucinação. Afirmaram que Pearl era um agente da CIA e seria executado sem perdão; depois, falaram que o jornalista não era da CIA e sim um agente do Mossad, o serviço secreto de Israel. Isto não melhorou em nada a sua condição: ele seria assassinado dentro em breve, insisitiram os seqüestradores.
Os terroristas que fizeram este estúpido joguinho se autodenominam Movimento Nacional para a Restauração da Soberania Paquistã. Sim, nós já vimos este filme antes e, sim, por menos reacionário que este artigo pareça, vamos chegar a seguinte conclusão: terrorismo, revolução e esquerdismo estão intimamente relacionados. Eis o motivo do silêncio do Fórum Sócial Mundial: falar de Daniel Pearl, mesmo que ele esteja nas mãos de “fanáticos religiosos” (como os esquerdosos classificam estes lunáticos, numa tática de desinformação grosseira para que o leitor tenha nojo ao ouvir o tema “religião”), é a mesma coisa que cuspir no prato que come – no caso, a ação revolucionária que vê o ser humano como uma mera idéia, e não como uma pessoa com corpo e alma.

Há também um outro motivo. Pearl não é um jornalista-toupeira, um ressentido que lida com os fatos de suas reportagens como se fossem provas indubitáveis de uma ideologia que explica os problemas do mundo. Muito menos um agente secreto, seja da CIA ou do Mossad, como parece ser sua vida com a também jornalista Marianne, francesa, grávida de seis meses, esperando uma menina que já tem nome: Claire.
Pearl foi sequestrado no dia 23 de janeiro quando foi à cidade de Karachi, no Paquistão, atrás de informações sobre uma matéria em torno de Richard Reid, o homem que tinha amostras de pólvora na sola dos sapatos, prontas para serem detonadas em um aeroporto de Miami. Formado pela Universidade de Stanford, Daniel Pearl é conhecido na redação do Wall Street Journal como um sujeito tranquilo e, segundo o diretor de redação Paul Steiger, notório por sua cautela. Parece que nesse ponto a cautela foi interferida por um acaso macabro. Naquele dia 23, Pearl ligou à esposa e disse que iria demorar mais um pouco na procura por uma “fonte obscura”. Ela seria um sheik chamado Mubarak Ali Gilani, do grupo extremista islâmico Tanzimul Fuqra (Partido dos Pobres), que daria informações sobre Reid e suas relações com a Al-Qaeda, o grupo terrorista comandado por Osama bin Laden. Foi combinado um encontro num restaurante, às 18:45 da noite. Quando chegou ao local, estava vazio e escuro. Dois homens se aproximaram dentro de um carro e levaram-no.

Uma semana depois surgiram os e-mails, todos assinados por um tal de “kidnappingguy”, escritos em um péssimo inglês (chamavam Pearl de “mR. DannY”, “Daniel”, ou “mr. pearl”) e extremamente confusos. Uma das exigências até parecia piada: os seqüestradores pediam o retorno de um avião de combate F-16 aos domínios do Paquistão, o que os EUA já fizeram no final da década de 80. Na verdade, os especialistas deduzem dos pedidos duas suposições: ou são terroristas de primeira viagem, ou estão confundindo as autoridades paquistanesas e americanas com pedidos e conjeturas absurdas para retardar o máximo possível as negociações de um refém já morto desde o início da confusão.

Mas a história de Daniel Pearl não é uma mera confusão. É uma tragédia humana, e ela ecoa no fato histórico mais importante do começo do século XX: o Terror de 11 de setembro. É também o climax agoniante de uma série de assassinatos e perseguições cometidas contra jornalistas que estão entre o Paquistão e o Afeganistão. Claro que a profissão de correspondente de guerra sempre foi perigosa. Segundo o Comitê Protetor dos Jornalistas (um nome tristemente irônico), 24 repórteres foram mortos em 2000; em 2001, com a guerra no Afeganistão, o número subiu para 55 jornalistas. A situação teve seus lances de crueldade quando o Taliban sequestrou os correspondentes Maria Grazia Cutuli, do jornal italiano Corriere Della Serra, e Julio Fuentes, do espanhol El Mundo. Enviaram fotos e vídeos dos dois e avisaram que seriam executados “em nome de Alá, o misericordioso”. Parece que a misericórdia deles é outra: Cutuli e Fuentes foram assassinados com tiros no rosto.

A confusão provocada pelos imbecis da mídia em relação a estes “fanáticos religiosos” também não ajuda. Já está claro que os acontecimentos envolvendo o Terror de 11 de setembro não são de origem religiosa. São de interesse puramente político. Osama bin Laden & Cia. Ltda. usam a religião como mote para chamar uma série de incapazes e necessitados a uma luta suicida. Confundem perseverança com determinação, coragem com loucura cega e sem conseqüências. Com os ataques do Exército americano contra o Taliban, os pequenos terroristas resolveram usar os homens da mídia como marionetes políticos para suas causas absurdas. Pearl é um exemplo que apareceu num momento crítico, em que o governo Bush percebeu que caiu na maior cilada da História e está prestes a se envolver numa guerra solitária contra o terrorismo, e também numa época em que o Paquistão está fazendo das tripas coração para ter um conflito contra a Índia.

De fato, todos estes movimentos de “restauração pela soberania da minha aldeia” são de inspiração revolucionária, portanto esquerdista. No Oriente Médio, Santo Antonio Gramsci está prestes a se tornar aiatolá, graças ao investimento da China e da máfia russa, proveniente da KGB, em armas e soldados naqueles homens que, na falta de um sentido da vida e para a vida, embarcam na insanidade de um Alá que nunca existiu nas páginas do Corão. Usar e abusar de jornalistas americanos é apenas uma parte do jogo. Se Osama bin Laden disse em sua última declaração, divulgada pelos jornais ocidentais, que a luta é agora no coração da América, talvez ele não esteja falando em uma linguagem tão figurada. Para estes sujeitos, luta é revolução, e se a revolução está dentro da América, não seria dentro do pensamento das pessoas – dentro da alma humana? Como veremos, aqui no Brasil, esta foi a primeira fase. Depois do dia 11 de setembro, entramos na segunda fase: a da guerra em que a audácia dos canalhas aterroriza os homens de bem.

Ao mesmo tempo em que Marianne Pearl recebia a notícia de que seu marido poderia estar jogado com uma bala na testa, em um cemitério no Paquistão (felizmente, era uma notícia falsa), a estudante de medicina Aline Mota, residente na rua Kansas, bairro do Brooklyn, São Paulo, escutou na parede ao lado vários sussurros de socorro. Se não fosse um corte de energia na rua, sua mãe Nara nunca teria escutado os pedidos e avisado a filha. Percebendo que o desespero do sujeito era latente, Aline resolveu pegar seu estetoscópio, pôs na parede e assim pode escutar o que o homem falava: “Socorro! Socorro! Sou Washington Olivetto e fui seqüestrado!”.

Assim foi respondida uma pergunta que não queria calar há mais de dois meses. Olivetto estava num bairro de classe média, num cúbiculo controlado por câmaras de TV e seu ar vinha de um respirador que, misteriosamente, fora cortado no sábado à tarde. Sentindo-se sufocado, tocou a campainha na qual avisava os seus “guardiões” (era assim que ele deveria chamar os sequestradores, segundo um livro de regras) e percebeu que estava sozinho. Gritar por socorro foi sua primeira reação e, quando foi libertado pelos policiais, deu graças a Deus e disse que estava lá há 60 dias.

Na verdade, ele estava há 53 dias, o que não é nada perto dos 120 dias de cativeiro do empresário de Salto, Roberto Benito Júnior, das Lojas Cem. Mas Washington Olivetto representa tudo o que São Paulo tem de cosmopolita: dono da W/ Brasil, venerado pelos publicitários como um dos mais criativos do país, sempre simpático na imprensa, eloqüente e bem relacionado nas redações dos grandes jornais, Olivetto também tinha um plus sobre seu caso. Ele fora seqüestrado por uma quadrilha estrangeira.

Imeditamente, veio um nome e um rosto na mente dos jornalistas brasileiros: Abílio Diniz. Em 1989, em plena campanha presidencial, o dono das empresas Pão de Açucar foi seqüestrado por um grupo de chilenos, canadenses e brasileiros. Graças a um erro crucial – um dos integrantes do grupo havia esquecido, dentro do carro usado para o sequestro, uma nota fiscal de uma oficina em que havia o número do telefone do cativeiro – , a polícia descobriu o local e logo o cercou, começando uma das mais tumultuadas negociações já feitas, e uma das mais esquisitas, em que o senador Eduardo Suplicy, do PT, o candidato Luís Inácio Lula da Silva, também do PT, o então senador Fernando Henrique Cardoso e o procurador Aloysio Nunes Ferreira, conhecido nos corredores da guerrilha comunista como Matheus, lutavam pela preservação dos… seqüestradores!

Diniz foi libertado e a quadrilha foi presa. Seus integrantes estavam vestindo camisetas do PT – um insólito detalhe que, até hoje, acredita-se que foi uma artimanha do governador Orestes Quércia para afugentar os votos de Lula. Pode até ser, apesar do PT, como o próprio Suplicy confirmou em entrevista sobre o caso Olivetto, manter contato com os remanescentes da quadrilha que foram extraditados para o Chile e para o Canadá. Para intensificar a ligação, livros de teor esquerdista, como os diários de Che Guevara e um manual mimeografado de Carlos Marighella, foram encontrados na época, junto com adesivos do PT louvando a candidatura de Lula.

Como num ricorsi de Vico, a história se repetiu com Washington Olivetto. Uma parte da quadrilha foi presa em Serra Negra: era, ao que parece, a célula-mãe da operação, já que o líder estava presente. Seu nome é Maurício Fernandéz Norambuena, oficial e chefe operacional da Frente Patriótica Manuel Rodriguéz, braço armado do Partido Comunista chileno. Seu currículo como revolucionário é bem interessante: com duas condenações de prisão perpétua no Chile, Norambuena é responsável pelo seqüestro do filho do proprietário de um jornal direitista, “El Mercurio”, e é um dos acusados de ter assassinado o senador Jaime Gúzman, ideólogo do governo do general Pinochet.

Mesmo que não haja motivações políticas diretas no caso Washington Olivetto, não se pode esquecer que estes sujeitos bebem, comem, cheiram e respiram a política revolucionária. E mais: não são pessoas da periferia. São intelectuais da melhor estirpe. Norambuena, por exemplo, é um leitor de Rimbaud (um dos livros encontrados no cativeiro de Olivetto era uma edição em castelhano de “Uma Temporada no Inferno”), além de ser formado em (advinhem?) jornalismo. Outro sequestrador, Rubem Oscar Sanchez, de 30 anos, alegou em seu depoimento com muito orgulho que era formado em quatro faculdades, entre elas (também advinhem?) filosofia e sociologia. “Eram sujeitos muito bem articulados”, comentou o delegado da Deas (Delegacia Anti-Sequestro), Wagner Giudice. “O raciocínio de Maurício era muito rápido, ele estava muito bem informado, e os outros mostravam o mesmo nível de inteligência”.

Infelizmente, o delegado Giudice confundiu inteligência com malícia. Os procedimentos da quadrilha de Norambuena seguem, passo a passo, os ensinamentos básicos de uma boa guerrilha política. Segundo o livro “Comando Vermelho – A História Secreta do Crime Organizado”, de Carlos Amorim, apud Olavo de Carvalho em “A Nova Era e a Revolução Cultural“, estes são o “decálogo” do bom revolucionário que parte para a luta armada:

“1 – Realização de assaltos simultâneos em vários bancos, para desorientar a polícia.

2 – Com o mesmo objetivo, bombardear os postos policiais com dezenas de alarmes falsos, no dia dos assaltos planejados.

3 – Não sair para uma operação armada sem deixar montado um “posto médico” para atender os feridos (que antes os bandidos deixavam à sua própria sorte, expondo-se à delação por vingança).

4 – Em caso de emergência, invadir pequenas clínicas particulares selecionadas de antemão, obrigando os médicos a dar atendimento aos feridos.

5 – Planejamento e organização de sequestros.

6 – Designar para cada operação um “crítico”, que não participa da ação mas apenas observa e assinala os erros para aperfeiçoar a ação seguinte.

7 – Planejar as ações armadas com exatidão, de modo a obter no mínimo de tempo o máximo de rendimento com o mínimo derramamento de sangue. (Hoje o Comando Vermelho consuma em quatro ou cinco minutos um assalto a banco.)

8 – Técnicas para o bando retirar-se do local da ação em tempo record, aproveitando-se da conformação das ruas, do congestionamento, etc., ou provocando deliberadamente acidentes de trânsito.

9 – Planejamento cuidadoso de todas as ações, segundo o princípio de Carlos Marighela: “Somos fortes onde o inimigo é fraco. Ou seja: onde não somos esperados.”

10 – Informação e contra-informação como base do planejamento.

11 – Sistema de “aparelhos” — casas compradas em pontos estratégicos da cidade, para ocultar fugitivos após as operações, guardar material bélico etc.”

A quadrilha de Norambuena seguiu vários destes ensinamentos com precisão, provando que esquerdista, além de ser burro, é acomodado, pois, mesmo com toda a tecnologia do mundo, ninguém pode prever a interferência do acaso, ou melhor, de um simples estetoscópio. A inevitável ligação entre estes terroristas e os esquerdosos do PT já provocou reação em suas eminências pardas. Eduardo “Mogadon” Suplicy já se apressou em dizer que o caso Olivetto não tem relação com o caso Abílio Diniz. Aloísio Mercadante afirmou, junto com José Dirceu, reconhecido agente da KGB com treinamento em Cuba, que estes crimes serão usados contra o PT. A prefeita Marta Suplicy vociferou que o PT está sendo também vítima da violência com os assassinatos de Antonio da Costa Santos e de Celso Daniel. O candidato José “Araguaia” Genoíno berrou que é a favor da prisão perpétua (já José Dirceu disse que o camarada talvez tenha se exaltado com esta declaração). E, finalmente, numa opinião que parecia mais de um desesperado do que de um indignado, o presidenciável Luís Inácio Lula da Silva afirmou, com unhas e dentes, que a culpa da violência não era da esquerda. “A culpa é da direita”, rematou.

Lula talvez não saiba, mas com sua boutade de sindicalista emendou o dito de Hamlet: “Há entre o céu e a terra mais coisas que sonha a tua vã dialética”. Ora, pois, como diriam os portugueses, o PT só está colhendo o que semeou. Como bem observaram Janer Cristaldo e Maria Lúcia Vítor Barbosa, depois de vinte anos elogiando a bandidagem por ser uma forma de mostrar que o povo não agüenta mais a escravidão do sistema capitalista, o Partido dos Trabalhadores, na sua bolha de vestal, acreditou que a morte, esta moça séria, nunca roçaria a sua nuca. Antonio da Costa Santos e Celso Daniel estão aí para provar o contrário.

Mas o desespero do partido prova também que ele está repleto de homens partidos. O Fórum Social Mundial em Porto Alegre é um exemplo de que a esquerda brasileira está desatualizada em relação aos seus companheiros latino-americanos. Observem que isso não é uma boa notícia, já que o atraso não é sobre ideologias ou novas teorias para explicar o mundo. Neste ponto, o Fórum mostra que seu anacronismo ao chamar um velho chato e gagá como Noam Chomsky, é apenas uma forma de refletir que a fase da revolução cultural foi substituída por outra: a da guerra pura e simples. A mídia brasileira não quer ver este detalhe, e prefere chamar o surto de criminalidade de “epidemia”. Por ironia, o único a assumir a verdadeira situação foi um office-boy do Estado, o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, que disse a todos que estavámos em guerra. No entanto, não é uma simples guerra contra uma bandidagem iletrada. Há vários Maurícios Norambuenas nas faculdades, nas redações de jornais, na televisões, nas escolas, nos locais de trabalho. Eles não perdem tempo e praticam exatamente o que Osama bin Laden sugeriu na declaração: fazem o possível para que a luta se intensifique dentro do país, tornando o caos uma espécie de ordem aceitável para a maioria da população.

A incompetência da esquerda petista também se mostra ao saber que George W. Bush mandou abrir um escritório da CIA, em plena Avenida Paulista, para descobrir ligações terroristas no Brasil – especialmente, com as FARCs, grupo de guerrilha louvado pelo PT, em que seu estrategista militar é recebido com tapete vermelho no Rio Grande do Sul ou com pompa e circunstância por um deputado paulista. E como eles não querem se relacionar com o terrorismo em hipótese nenhuma – especialmente em um ano eleitoral -, já armaram suas farsas, entre elas uma denúncia no Ministério Público feita por José Dirceu, que acusa a TFP (Tradição, Família e Propriedade) de fazer atentados de extrema-direita contra políticos de esquerda. Dirceu, na sua ansiedade de araponga da KGB, esqueceu-se que a TFP fica restrita a um sobrado de classe média, e que sua renda não dá para mobilizar nem metade dos coquetéis molotov que seria necessário para uma operação terrorista decente.

Ao acusar a “direita” da violência que atingiu seus camaradas, Lula prova ser um sujeito incompetente porque, na sua cabeça de mortadela, mal sabe que, no Brasil, não existe direita. Na verdade, a suposta elite conservadora é um grupo de acomodados, que mamam constantemente na teta murcha do Estado, e bebem na mesma fonte de narcotráfico e guerrilha que o PT endeuseia veladamente. Nunca existiu uma esquerda, e nunca existiu uma direita brasileira – mas sempre exisitiram os oportunistas. O grande exemplo desta constatação é o governo de Fernando Henrique Cardoso, certamente o pior presidente que o Brasil já teve, gramsciano de carteirinha, que permitiu a expansão do Movimento dos Sem-Terra sob o nome de “Reforma Agrária”, a entrada de um ex-terrorista, Aloysio Nunes Ferreira, como Ministro da Justiça, e disseminou a doença espiritual desta nação com uma velocidade pior que a do vírus da AIDS. Nada improvável numa terra papagalis, em que seqüestrador de embaixador americano vira deputado federal ou jornalista na Rede Globo. Coisas da democracia, este regime esquisito que, no fim, desemboca na intolerância da igualdade e transforma a política em um jogo de pé-de-chinelo.

O pretexto da guerra “justa” – termo criado pelo grande ideólogo da Igreja como Estado, Santo Agostinho – foi usado nas respostas aos ataques do Terror de 11 de setembro para fortalecer o Estado e disfarçar suas rachaduras. Quem fica desorientados são os esquerdistas de quinta categoria. Mas, a partir daí, eles tomarão atitudes drásticas: organizar uma onda simultânea de sequestros para desorientar a polícia (como está fazendo o PCC – Primeiro Comando da Capital -, e como fez a quadrilha de Norambuena), espalhar teias de informação e contra-informação (as FARBs suspeitas de ter matado os prefeitos Antonio da Costa Santos e Celso Daniel) e anestesiar a população com ONGs, passeatas pela paz e comícios em homenagens aos mortos, tudo para retardar ainda mais uma guerra inadiável.

Assim, usar um jornalista americano e um publicitário brasileiro como peças de um quebra-cabeça, na qual a política é feita com armas e não com o bom senso, é um mero detalhe. Tanto Norambuena como o Movimento Nacional pela Restauração da Soberania Paquistã são fios que se cruzam numa estratégia que visa nada mais, nada menos, que a tomada do poder. O Fórum Social Mundial ficou quieto em relação a Daniel Pearl e azedou com o sequestro de Washington Olivetto não por remorso ou culpa. Seu silêncio foi um atestado de imbecilidade. A própria esquerda está atrasada na luta que sonhou tanto em entrar. Quem tomou o comando da situação foram os vândalos, os lunáticos e os homicidas. Como o filme de Billy Wilder que dá título a este artigo, o Fórum Social Mundial é o parque de diversões em que o jornalista-toupeira interpretado por Kirk Douglas faz seu grande furo. Mas o parque terminou, a montanha já desmoronou, e os sete abutres procuram novas carnes e novas almas. Quando teremos algum ás na manga?

Os leitores de estrelas

fevereiro 25, 2010

Não existe coluna sem leitor. A experiência de escrever na internet é a prova que não se pode prever nada, especialmente o tipo de leitor para quem o colunista escreve. Aqui em “O Indivíduo”, recebo poucos, mas bons e-mails sobre o que escrevo. Quando uso o adjetivo “bom”, não falo em baba-ovo, e sim leitor que sabe colaborar com a coluna, dando seus comentários, ajudando o coitado deste escriba que vos fala em fazer algo melhor na semana seguinte. Afinal de contas, se alguém pensa que toda a sexta feira pela manhã, você encontra essa coluna prontinha, junto com a do Alvaro Velloso, não é por vaidade minha, e sim pela certeza de que encontrarei algum leitor paciente, que tirará proveito do que escrevi, para alguma coisa de útil na vida.

Claro que existem os leitores chatos, mas estes eu deixo para o limbo dos esquerdosos ou dos sei-lá-o-quê enrustidos (o politicamente correto me proíbe escrever a palavra por extenso). O que importa mesmo são os leitores que me motivam a queimar o cerébro toda a santa semana, e são para eles que a coluna de hoje é dedicada.

Começaremos com as mulheres, claro. Existem cinco leitoras para quem escrevo especificamente a minha coluna. A primeira é minha mãe já que, segundo meu mapa astrológico e meu psiquiatra de quinta categoria, sou um autêntico filho da mãe, com complexo de Édipo muito bem resolvido, obrigado. A segunda é uma outra moça, que mora muito, mas muito longe daqui, e que se eu der o nome dela nesta coluna, estarei rompendo um pacto muito sério feito em New Jersey, apesar de que pactos feitos em New Jersey terminam em nada. Mesmo assim, fico quieto, até porque ela é uma leitora fiel. A terceira é a senhorita Maria Inês de Carvalho, uma moça séria, inteligente, e que escreve num blog mui interessante, com uns links que não tenho paciência para procurar na rede. Há também a misteriosa Ada Veen, que, ao que parece, só pode ter saído das páginas de Nabokov pois, pelo o que se percebe do blog dela, esta mulher tem uma mente brilhante, do tipo que a gente quer guardar como uma jóia, uma dessas preciosidades que acontecem de cem em cem anos. A última leitora, last but not least, é aquela carinhosa que me avisa dos meus erros de pedreiro na última flor do lácio, e abençoada seja porque, sem ela, esta coluna não passava da minha caixa de e-mails.

Agora vamos aos homens. Na semana passada, quem leu o meu ensaio sobre José Guilherme Merquior (que me deixou com o cérebro em faíscas, tamanha a perturbação que me causou), percebeu que eu dava uma nova visão do famoso liberal – uma visão não muito liberal, para falar a verdade. Achava que estava delirando, mas recebi uma mensagem do Sr. Embaixador José Osvaldo de Meira Penna, autor de “Em Berço Esplêndido” e ” O Espírito das Revoluções”, e vi que não estava sozinho nas minhas investigações. Reproduzo a mensagem abaixo:

“Embora em última análise admirador de Merquior, sempre tive restrições a uma certa forma de oportunismo que caracterizava sua erudição. Ele teve, por isso, sucesso com gente oportunista e de pouca cultura, como o Collor de quem se tornou guru, gerando a idéia de “liberalismo social”, conceito que nada significa mas usa o mantra “social” para fazer sucesso. Merquior teve uma polêmica feroz sobre Platão com nosso colega e amigo Mário Vieira de Mello, que antes eu chamaria de ultra-conservador.

“Comigo também sobre Jung. Vendo seus ataques contra o suíço, que conheço bem pois tenho 40 anos de associação com a psicologia de Jung, que conheci em Zurique em 1961, ano de sua morte, apontei para a falsidade de sua posição no JORNAL DO BRASIL. Ele rebateu, com muita verve. Verificando nas bibliografias de todos seus livros – pois ele era absolutamente cuidadoso nisso e nos seus índices – descobri que só tinha lido um livro sobre psicologia analítica, intitulado “Freud e seus Discípulos”, de Roazen, que era um freudiano muito anti-Jung. Atacava Jung injustamente de anti-semita e pró-nazista, além de mistagogo.

“Veio a polêmica e eu me queixei que quem ataca um autor deveria, pelo menos, ler os livros desse autor… Para evitar que a polêmica degenerasse, em certo momento achei melhor interrompê-la. Pouco tempo depois soube que ele estava doente.

“Há uns 3 ou 4 anos tivemos um seminário sobre o Merquior em Terezópólis, organizado pelo Instituto Liberal do Rio e o Liberty Fund de Indianapolis, USA, sobre a obra do Merquior. Houve mais ou menos um consenso que ele foi um formidável polemista, muito culto e com implacável ironia, mas não um liberal autêntico.

“Abraços Meira Penna”

Eu havia apontado a crítica de Jung feita por Merquior como uma das amostras de que ele tinha um medo terrível da vida do espírito. Não sou jungiano fanático, mas acredito que o suíço tinha intuições geniais, muito mais apuradas que o Dr. Freud, e elas não devem ser desprezadas. Há um artigo de René Guénon em “Os Símbolos da Ciência Sagrada” em que ele arrasa com Jung em menos de cinco páginas; entretanto, Guénon havia lido alguma coisa de Jung e era o mestre na questão da simbologia tradicional. Atacar a teoria jungiana sem ter lido nenhum livro dele é uma burrice sem fundo. Não suporto Marx, mas me obriguei a ler algo dele para que a minha objeção tivesse um sentido.

Se Merquior fez isso ou não, seria tristeza saber que ele caiu no mesmo erro de tantos esquerdistas. Regra básica para uma vida intelectual honesta: o que você não sabe, você diz que não sabe. Nunca fique propalando besteiras aos quatro ventos. Deus não merece tamanha heresia. Já dizia Dirty Harry: “A man´s got to know his limitations“.

Outro leitor, Jorge Kreimer, enviou-me uma versão do Salmo 88, aquele que utilizei no meu ensaio “Na Companhia das Trevas”, traduzido do aramaico. Eis aqui a nova versão:

“1 Um cântico, com acompanhamento musical, pelos filhos de Korach, para o Condutor, sobre Machalat Leanot, um Maskil por Heiman, o ezrachita.
2 Senhor, D-us de minha salvação, de dia eu clamo, de noite estou diante de Ti.
3 Que minha prece venha diante de Ti, inclina Teu ouvido ao meu lamento.
4 Pois minha alma está saturada de tormentos e minha vida já alcançou o Mundo Mais Baixo.
5 Fui considerado com aqueles que descem ao túmulo, fui como um homem sem força.
6 Entre os mortos que estão livres, como os cadáveres que jazem na sepultura, que Tu não mais lembras; mas eles morreram por Tua mão.
7 Tu me colocaste ma mais baixa das covas, na mais extrema escuridão, nas sombrias profundezas.
8 Sobre mim Tua cólera pesou, e todas as Tuas ondas estrondosas afligiram-me.
9 Tu distanciaste meus amigos de mim, Tu me fizeste abominável para eles; fui encarcerado sem poder sair.
10 Meu olho é molestado pela aflição; clamei a Ti, oh Senhor, todo dia. Estendi minhas mãos a Ti.
11 Tu farás maravilhas para os mortos? Os fracos se erguerão e Te oferecerão agradecimento?Selá.
12 Pode Tua benevolência ser recordada no túmulo? Ou Tua fidelidade na extrema ruína?
13 Podem Tuas maravilhas tornar-se conhecidas no escuro? Ou Tua retidão na terra do esquecimento?
14 Porém, eu a Ti, Senhor, tenho clamado, e pela manhã minha prece Te saudará.
15 Por que, Senhor, Tu abandonarias minha alma? Por que Tu esconderias Tua face de mim?
16 Aflito estou, e próximo à morte desde a juventude. Tenho carregado Teus horrores e sinto constante pavor.
17 Tuas fúrias vieram sobre mim, Teus horrores me esfolaram.
18 Eles me cercaram como água o dia inteiro, me circundaram em uníssono.
19 Tu distanciaste de mim amigo e companheiro, meus mais queridos (estão) em obscuridade.”

A versão que usei no meu texto é fogo de palha perto desta. Agora temos a dignidade do sofrimento em versos terríveis como: “Tu distanciaste meus amigos de mim, Tu me fizeste abominável para eles; fui encarcerado sem poder sair / Meu olho é molestado pela aflição; clamei a Ti, oh Senhor, todo dia. Estendi minhas mãos a Ti”. Não é à toa que Salomão dizia: “O temor a Deus é o princípio do conhecimento”. Abaixo reproduzo uma nota de pé-de-página, transcrita também por Jorge Kreimer:

“O exílio e a dispersão de Israel foram Divinamente ordenados como instrumentos para estimular o desenvolvimento espiritual na perseguição da perfeição. No exílio, o judeu solitário e inseguro é compelido a voltar à fonte Divina de força, para encontrar segurança e propósito para sua vida. O exílio é excepcionalmente próximo de D-us, pois nenhuma lealdade às nações seculares interfere com sua devoção a D-us. Idealmente, a santidade de Eretz Ysrael conduzirá o povo a elevadas percepções de D-us e ao cumprimento de seu potencial espiritual. Mas em vez de usar a terra para aumentar seu desenvolvimento, eles se permitiram tornar-se criaturas da terra. Portanto, foram exilados, de modo que compreendessem que seu “lar” é a Torá, não um pedaço de propriedade; e seu sucesso depende de Mitzvot (boa ação), não de um arado. Apesar da oportunidade de desenvolvimento espiritual que o Galut (exílio) oferece, a depressão, a desgraça e a destruição ameaçam o errante sofredor. Nos versículos seguintes, os filhos de Korach descrevem vivamente as agonias do Galut e expressam o anseio de Israel de redenção Divina. A expressão machalat Leanot no texto descreve o penoso estado de Israel no exílio. Machalá é doentio (ansiando pela Terra Santa) e Leanot é afligido (pela perseguição no exílio). Heiman era, segundo alguns dos nossos sábios, aquele que provia acompanhamento musical para os Salmos. O fato de ser cognominado o ezrachita deve advir de ter sido um residente permanente do Templo (Ezrach)”.

A nota não precisa de comentários porque fala por si só.

São para leitores como essas mulheres e homens que escrevo esta coluna em O Indivíduo. São poucos, mas são os melhores do mundo. Não escrevo pelo prazer bobo da polêmica, muito menos pela vontade mórbida de fazer inimigos. Antes quinze, vinte, até trinta leitores, do que cem mil patetas que falam palavras de ordem sem saberem o que dizem. É por isso que este jornal se chama “O Indivíduo”: ele fala na consciência individual de cada um, naquele fundo único da alma em que o homem se depara consigo mesmo, e ninguém mais. Se meus escritos são uma forma do leitor compreender esta solidão, então estou cumprindo minha missão direitinho.


What are the stars but points in the body of God where we insert the healing needles of our terror and longing?
Thomas Pynchon

Um mendigo dormia nas escadas de uma igreja. De súbito, acordou com umas vozes estranhas e uns passos sussurrantes. Abriu os olhos e viu um homem alto, empertigado, a cabeça fitando com a mente o céu fixo, repleto de estrelas. Observou o sujeito mais atentamente e percebeu que ele falava sozinho. Não era uma voz nítida – parecia um murmúrio trôpego. O mendigo se aproximou devagarinho para saber o que ele dizia – afinal de contas, a noite estava amena de acontecimentos, e talvez uma pilhéria pudesse atenuar a ruína de sua vida. Resolveu, então, perguntar-lhe o que estava fazendo ao relento naquele horário da noite.

– Ora, estou a olhar as estrelas – respondeu o homem.

– E daí? – disse o mendigo – Eu as vejo todas as noites.

– Ah… mas hoje elas são especiais…

O mendigo não era versado em filosofia, é verdade, mas a dura experiência das coisas permitiu-lhe desenvolver o faro de que se duas pessoas discordam de um fato, logo uma delas estava errada – e não seria ele, pois quem conhecia mais de estrelas, de sua imobilidade e fixidez, indiferença e iluminação, senão este nobre locatário do degrau quinze de uma igreja do centro, onde o céu era o teto, a pedra era o cobertor e a cruz um afiado travesseiro? Sentindo-se afrontado pelo homem em seus conhecimentos de astronomia, decidiu perguntar mais uma vez:

– Por que são especiais? Por acaso tu ganhastes na loteria?

– Ah, sim… ganhei na loteria… na loteria do poder.

Ao ver que o homem tinha os olhos faiscantes ao soletrar a palavra “poder”, jogou mais uma isca:

– E como tu ganhastes nesta loteria?

Pela primeira vez, o homem mostrou seu rosto: era magro e pontudo no queixo, o nariz meio encurvado, a barba bem aparada. Ele sorria:

– Ah, foi muito simples. Tão simples que eu nem tive de vender a minha alma ao Diabo ou coisa parecida. Aliás, para quê acreditar no Diabo? Mas foi assim: um belo dia, eu quis ser parte desta loteria, e depois de muita luta, muita persistência, consegui. Demorou, mas consegui. Subi as montanhas mais sinuosas da Terra! Tive inimigos, inúmeros, que me acusaram das mais abomináveis mentiras. Atravessei-os todos de maneira implacável. Tive traidores que também aprenderam suas lições sem sentir o gosto do perdão, porque para se dar o perdão, precisamos fazer um julgamento das coisas, e o julgamento nos destrói. Para se conseguir o que se quer, não se pode ficar dilacerado entre o Bem e o Mal. O que importa apenas é a justiça, cega, impenetrável. Por isso que não acredito no Diabo – já Deus… bem, Deus é uma mera circunstância da vida. Aprende-se a suportá-lo como se não tivesse outra coisa melhor. Afinal de contas, foi ele quem criou este céu, mas também foi ele que te criou, não foi, pobre rapaz? (Nesse ponto, o mendigo não podia deixar de concordar, e fez isso com um muxoxo.)

“Agora, como ganhei nessa loteria tão complicada, tão restrita a poucos? Muito simples: disse a todos que defendia gente como você. Isso mesmo, como você, pobre rapaz, você que vê as estrelas todos os dias, mas não pode compreendê-las. E a culpa era de quem? De Deus, é claro! Mas notes bem, percebas o detalhe deste pequeno truque: nunca diga que é Deus que fez isso contigo. Deus é muito abstrato. Vou dar-te uma lição de vida: disfarce Deus sob o nome de História, e bote toda a culpa nela. Depois, tu colocas um intermediário, que pode ser o Governo, e é aqui que nós entramos: eu digo que quero entrar no Governo para resolver o que Deus não resolveu. Compreendes a genialidade do negócio? O povo aceita isso porque é mais fácil, é mais fácil do que eles se esforçarem para resolverem seus próprios problemas. Querem que outros façam o que não têm coragem de fazer. É por isso que ganhei na loteria do poder: é o meu momento de tentar resolver os problemas que Deus nos deu como maldição. Agora, tudo está ao meu dispor, na ponta dos dedos, e as montanhas que me pareciam tão longínquas, agora estão tão perto… A única coisa que não posso alcançar são estas estrelas, é este céu, e mesmo assim… (O homem acabara de dar um voltarete vertiginoso e sua voz se tornara agitada e aguda, como se sua mente estivesse prestes explodir de tanto orgulho e satisfação) Mesmo assim, nada pode me deter. Eu ganhei na loteria do poder, entendes? Nem este céu que permanece desde dos tempos de Ulisses, tão imperativo quanto aquelas montanhas que impediam a minha vitória, pode me deter”.

O homem parou de gesticular e, num gesto de desafio, gargalhou aos brados para o alto:

– Afinal, tu não me hás de cair em cima!

E o mendigo apenas fungou o nariz:

– E nem tu hás de escalá-lo.

Dito isso, ele cobriu-se com os cascalhos e voltou a dormir.

Inspirado no capítulo XLVI do livro “Quincas Borba”, de Machado de Assis.

I sought a theme, and sought for it in vain.
I sought it daily for six weeks or so
Maybe at last, being but a broken man,
I must be satisfied with my heart, although
Winter and Summer till old age began
My circus animals were all on show,
Those stilted boys, that burnished chariot,
Lion and women and the Lord knows what.

W.B.Yeats, “The Circus Animals´Desertion”

Na vida intelectual de um país, qualquer manifestação, por mais honrosa que seja, de compreender a cultura onde está inserido, acaba caindo na lâmina difusa da faca de dois gumes. É o caso de José Guilherme Merquior, famoso ensaísta e diplomata, que morreu aos 49 anos de idade, um dos desaparecimentos mais trágicos que o Brasil já teve. Brilhante e precoce intelectual, a vida de Merquior foi marcada pelo estigma de “enfant-terrible”, pelo estilo claro na exposição de idéias filosóficas e na análise de obras literárias, passando pela depuração na política liberal. Foi também um polemista incrível, que travou uma luta contra o grupo da Maria Antônia da USP (entre eles, D. Marilena Chauí), mas sem perder a elegância que faltava aos reis esquerdosos daquelas bandas. Mostrou que o psicanalista Eduardo Mascarenhas propalava absurdos e, no fim da vida, já alquebrado pela doença, quis realizar um projeto de nação, o último que o país teve, e que falhou por causa de um temor em enfrentar a imprevisibilidade da vida do espírito.

Contudo, ao mesmo tempo que Merquior quis incentivar a inteligência brasileira, pondo-a para funcionar por conta própria, ele acabou sendo, na sua vida, e depois, com sua morte prematura, o cadafalso inconsciente dela. É verdade que isto é uma tese polêmica, e tentarei prová-la com a ajuda do ensaio de José Mário Pereira, “O Fenômeno Merquior”, publicado no livro “O Itamaraty na Cultura Brasileira” e disponível na internet no site de Olavo de Carvalho, e da leitura da própria obra de Merquior que, apesar da brevidade da existência, foi surpreendentemente vasta, com 25 livros que passeavam por literatura, artes plásticas, ciência política, filosofia e diplomacia cultural.

Antes, preciso fazer um comentário pessoal, como autor desta investigação. Nunca conheci Merquior pessoalmente (até porque quando morreu eu tinha apenas doze anos de idade), mas tenho uma dívida intelectual com ele. Entre meus quinze e dezesseis anos, fui marxista por cerca de uma semana – ou pelo menos, um marxista enrustido, o que é pior do que ser guerrilheiro, se você ver sob uma determinada perspectiva. Li meu “Manifesto Comunista”, minha “Ideologia Alemã”, estava pronto para mergulhar no primeiro tomo empoeirado de “Das Kapital”, jogado entre as traças na antiga biblioteca da família. O que talvez me fascinou em Marx e Engels foi o estilo que não dizia coisa com coisa, o que é realmente muito sedutor quando se é um adolescente que não pensa coisa com coisa. Mas também estava lendo Machado de Assis, e como me interessava muito mais pela linguagem clara, irônica e ambígua do Bruxo de Cosme Velho, procurei livros que me ajudassem na análise de sua obra. Acabei me deparando, graças a um presente de meu pai, com o livro “De Anchieta a Euclides – Breve História da Literatura Brasileira”, assinado por um tal de José Guilherme Merquior, que dedicava mais de duzentas páginas a Machado. Não eram meras duzentas páginas: cada uma delas tinha uma observação direta, precisa, coordenando cada parte da obra machadiana com o retrato da história do século XIX. Para um jovem de dezesseis anos, aquilo era um assombro.

Resolvi, então, procurar mais sobre Merquior – e, milagre dos milagres, havia uma pilha de tomos dele na biblioteca de casa, dos quais fiz questão de surrupiá-los, mesmo com protestos dos chefes da família. Eram vários livros com títulos bastante promissores: “Razão do Poema”, “A Astúcia da Mímese”, “O Argumento Liberal”, “A Natureza do Processo”, “De Praga a Paris”, “De Anchieta a Euclides”, uma coletânea de crítica literária e uma monografia sobre ideologia e cultura chamada “O Véu e a Máscara”. O resultado destas leituras é que Merquior me mostrou, com uma agudeza rara, que o marxismo não levava a nada. Seu “O Argumento Liberal”, uma das melhores introduções ao pensamento liberal que li na minha vida, me apresentou a Vico, Ernst Gellner, Celso Lafer, Raymond Aron, Tocqueville e também (digo isso como contraponto) a D.Marilena Chauí. Já sua crítica literária me fez chegar a autores como Eliot, Cannetti, Musil, Murilo Mendes, João Cabral e Bruno Tolentino.

Desde que soube da memorável polêmica em que Merquior provou em detalhes que D. Marilena citava sem aspas, e na íntegra, o filósofo francês Claude Lefort, vi que se tratava de um homem com uma coragem intelectual ímpar. Hoje, este fato memorável, que mostra a picaretagem por trás dos filósofos da USP, está relegado na fogueira do esquecimento. O próprio Merquior é alvo de homenagens pálidas, como a do suplemento especial Mais!, do jornal Folha de São Paulo, conhecido pela publicidade faceira que dá às idéias uspianas. Até agora, o único texto que tratou Merquior com a justiça necessária é o de José Mario Pereira, mas, apesar de ser um depoimento comovente, em certos momentos ele descamba para a hagiografia.
Antes de analisar a obra de José Guilherme Merquior para depois descobrir seu encurralamento intelectual, temos que retratar o impacto da chegada do garoto-prodígio no mundo das idéias brasileiras. Com apenas vinte e um anos de idade, Merquior já tinha publicado vários artigos de crítica literária no suplemento cultural do Jornal do Brasil. Na década de 60, três anos antes da revolução de 1964, Merquior representava uma nova geração de críticos que substituiria os centauros que eram Otto Maria Carpaux, Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção e Eugenio Gondim. Eram impressionantes em seus textos a facilidade que ele tinha em passar da literatura para a estética, desta para a política, retornando através da filosofia para fazer sua conclusão. Seu estilo era exemplar por não simplificar o tema, discutindo a idéia até o ponto que se tornasse legível e legítima aos olhos do leitor. Nunca impunha sua visão de mundo, pelo menos não de forma explícita; nesse aspecto, era um diplomata por natureza, e a carreira que seguiu no Rio Branco foi só uma confirmação. Contudo, a grande vantagem de Merquior em relação a seus novos pares, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, era que ele visava compreender o fenômeno social e estético como um problema, nunca como uma solução. Isso, no entanto, foi no início da carreira intelectual. Com o passar do tempo, Merquior, apesar de todo o seu pluralismo e tolerância com outras idéias, se firma no propósito em acreditar numa razão histórica, nitidamente influenciada pelo Iluminismo (era um fã de Voltaire, de quem trouxe um pesado busto na sua primeira viagem à Europa) e por Hegel, e que o sentido desta história é imanente a ela. Portanto, era lógico – essa palavra que fascinava tanto Merquior – que este sentido se projetasse em um progresso, onde a liberdade, a democracia e a igualdade tivessem um papel fundamental. E, no meio disso tudo, havia o equilíbrio do Estado. Para se ter este desejado progresso, seria necessário elaborar um projeto de nação e para a nação, onde o equilibrio estatal traria a igualdade natural.

Merquior começou como crítico literário e é em seus ensaios sobre Rilke, Drummond e Murilo Mendes que podemos perceber as sementes de dois problemas:1) Sua análise da poesia destes autores, reconhecidamente metafísicos (mesmo Drummond, em sua fase de “A Rosa do Povo”, mostra que sua desordem política é também uma desordem da alma), não aborda o problema religioso com profundidade. Para ele, a transcendência está no aspecto estético da obra, em que a forma deve casar com conteúdo. Dessa forma, Merquior já dá amostras do seu futuro namoro com o estruturalismo, no qual vai se afiliar, mesmo que de forma independente, por causa de seu futuro professor, Claude Levi-Strauss; 2) Sua completa falta de consciência quanto às falhas de seu próprio racionalismo que apareciam nas entrelinhas de suas análises. Ao destrinchar “Elegias de Duíno”, de Rilke, Merquior aceita o mistério que envolve a obra, mas se arrisca em explicá-lo através de sua forma, acreditando ela estar interligada ao conteúdo. A grande virtude de seu amor pelas idéias é que Merquior não suportava desonestidade intelectual; era por isso que identificava num piscar de olhos quem copiava quem, como foi no caso de D. Marilena Chauí e Claude Lefort. Contudo, é esse mesmo amor que o levava a não considerar a poesia como a linguagem mais profunda que existe para representar a vida do espírito, limitando-a somente como um fenômeno estético, pois o espírito não está presente na razão imanente dos Iluministas. José Mário Pereira diz em seu relato memorialístico que Merquior ia à Igreja da Cantuária, no Rio, e apreciava a arquitetura e as pinturas exibidas, com olhar extasiado pela beleza, apesar de, provavelmente, se questionar no seu íntimo sobre os aspectos religiosos.

Infelizmente, isto não fica provado na sua obra. Merquior tinha pavor de quem se opusesse à sua razão histórica e estética. Os títulos de seus dois primeiros livros demonstram isso: “Razão do Poema” e “A Astúcia da Mímese”, esta inspirada na famosa expressão “astúcia da razão”, de Hegel, um homem que entendia bem deste assunto. Quem quisesse colocar o insólito no debate intelectual, como o instinto, experiências transcendentais ou transfigurativas, ele não hesitava em dar um peteleco e catalogar o sujeito de “irracional”, como se a razão em que acreditava fosse a única que prestasse. Favor não confundir isso com desonestidade intelectual. Merquior nunca foi um plagiador, mas um brilhante transmissor de idéias como o Brasil nunca teve. Sua obra é coerente com sua vida pessoal e pública como diplomata e homem de idéias, e se por acaso este texto der a impressão que tudo que ele fez foi em vão, seria um erro lamentável da minha parte, não do leitor. O esforço de Merquior, em tão pouco tempo, foi hercúleo num país que não teve igual para seu trabalho. Mas foi esse esforço de querer fazer o bem que nos expôs para sempre ao mal que nos persegue desde do nosso descobrimento.

A crítica literária de Merquior é recheada de momentos brilhantes. Seus ensaios sobre Drummond e João Cabral figuram entre os melhores da fortuna crítica destes autores. A visão em torno de Machado de Assis é a melhor introdução aos estudos literários de Antonio Cândido, Raymundo Faoro, Jonh Gledson e Roberto Schwartz. Foi ele quem deu o aviso pioneiro da poesia de Francisco Alvim e Bruno Tolentino, então em seus primeiros livros. Sua admiração por Robert Musil era exasperante, chegando ao ponto em que ele preteria Eliot por causa de seu “pensamento irracional”.

Mas o que deixa o leitor aturdido é a maneira como Merquior via a cultura como um todo orgânico que tinha suas metamorfoses e nunca se petrificava em um sistema ideológico. Foi isso que o salvou de uma influência marxista, já que para ele, Marx havia reduzido todo o sentido da História numa luta de classes que terminava em ditadura, não em liberdade. Desde o início, tinha uma visão democrática do processo histórico, e foi esta visão que o botou numa série de suspeitas no Itamaraty: Seria ou não um esquerdista? É certo que Merquior ajudou numa exposição de fotografia cubana, mantinha correspondência intensa com Leandro Konder (de quem era amigo desde dos vinte anos) e depois teria contato freqüente com Darcy Ribeiro, mas tachar um homem com a grandeza intelectual de Merquior de “esquerdista” é, francamente, um insulto. Contudo, sua política de boas relações com a esquerda foi curiosamente manipulada pelos próprios esquerdistas – em especial, os paulistas -, que afirmarvam que ele era “reacionário”, “cabeça da ditadura” e, talvez o golpe mais sujo, “guru de Fernando Collor”.

Merquior suportava a esquerda porque, desde do início de sua carreira, sabia que ela teria um papel importante no seu projeto sócio-liberal. Em uma carta ao então presidente José Sarney, citada por José Mário Pereira, ele comenta que “Cuba não oferece maiores perigos na América do Sul”, por isso deveriam reatar relações com o governo de Fidel Castro, como um “gesto de grande charme para a esquerda”. “Eles ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que ‘pô, esse Sarney não é assim tão reaça…’ “. Numa outra carta, também endereçada a Sarney, Merquior escreve: “Temos que servir certos gestos simpáticos à esquerda, embora – ça va sans dire – sem comprometer a linha moderada, social-liberal, que presidiu a nova república. Uma ‘apertura a sinistra’, sem exagero”.

São por trechos como esse que percebemos como os esquerdosos são ingratos. Merquior dava de bandeja o poder àqueles que, durante anos, reclamaram de perseguições e exílios. A pergunta que não quer calar: Ele sabia que isso seria o fim de uma ordem política no Brasil? O que fica patente, ao ler os escritos de Merquior, sejam sobre política ou literatura, é sua ingenuidade. Ele não era malicioso, mas acreditava piamente que seu projeto socio-liberal ajudaria o Brasil a recuperar os rumos da democracia depois de vinte anos de ditadura militar. Mas para descobrir onde está enterrado o erro, temos que ver alguns de seus textos sobre ideologia e simbolismo, publicado enquanto fazia doutorado na London School of Economics em 1978.

O nó gordio da questão em torno do “fenômeno Merquior” é que ele analisava tudo sob o dogma da complexidade social. Assim, ficava praticamente míope ao fundo maior de problemas que apresentavam seus estudos sobre ideologia e simbolismo. Seu mergulho no mar parava ao se deparar com os corais – e ele não tinha coragem de ir adiante. Há um medo secreto em seus textos de ficar consciente dos problemas do espírito. Isto fica claro na sua análise sobre ideologia, em que usa a metáfora do véu e da máscara. O véu cobria a visão de quem fazia e atuava nos interesses de determinada ideologia; a máscara era a face de quem via de fora e percebia o efeito nocivo dos dogmas ideológicos. Para Merquior, no entanto, o véu e a máscara se tornaram um muro que o protegia com seus dogmas do temor do irracional e do místico. Observem o que ele escreve sobre Jung:

“Quanto a Jung, o cabeça de um renascimento romântico na teoria dos símbolos, seu rompimento com Freud deve ser encarado como um gesto essencialmente pré e não pós-freudiano. A despeito do valor heurístico limitado, mas real, da fantasia arquetípica, Rieff mostra a verdade de modo contundente ao nos convidar a olhar para Jung como um estudioso fundamentalmente reacionário, em cuja obra a erudição teológica protestante, numa lamentável inversão, passa a atacar o que antes fora seu orgulhoso incentivo: o racionalismo crítico. A atitude cúltica de Jung para com a religião e com a cultura, sua “sabedoria” balsâmica, sua prosa tipo sábio e seu furor anticiência não forma mais do que os derradeiros arrebóis do “humanismo literário em sua forma mais vingativa” – e, como tal, algo que mais merece ser desmascarado do que louvado. De qualquer modo, o homem que escreveu tantos estudos eruditos sobre um conjunto tão vasto de símbolos e de suas transformações (bem como sobre os símbolos de transformação) encarava de fato o simbolismo como força sagrada, não como objeto de estudo crítico. Por isso, é mais do que conveniente aceitar o que ele diz e procurar alhures por princípios, e não simples pistas, de descoberta e explicação de questões simbólicas”.

Claro que a teoria jungiana não é inatacável, mas Merquior fala mais neste trecho sobre o que o assusta do que propriamente o que ele defende. Seu maior medo é a vida do espírito se infiltrando na sua amada razão, e assim ele vê o simbolismo como um objeto crítico, apenas com seu sentido relativo, esquecendo-se do absoluto e de seu contato entre o humano e o divino. Além disso, critica Jung por seu “furor anticiência”, o que não correspionde aos fatos, pois o suíço foi o primeiro a procurar o físico Wolfgang Pauli para elaborar sua teoria da sincronicidade.

Isto só foi uma amostra dos temores de Merquior. No entanto, não se pode duvidar que Merquior sempre foi um crítico cultural que atendia corretamente à sua própria definição, explicitada no livro “As Idéias e as Formas” (título que, por si só, é uma professão de fé ao estruturalismo): “um ensaísta que analisa, de maneira original, no todo ou na parte, a cultura em que vive”. Infelizmente, ele ficou apenas na parte – o todo foi deixado para trás, ou pior, o todo ficou nas mãos do fenômeno social.

É aqui que a porca torce o rabo. O projeto sócio-liberal de Merquior, elaborado durante doze anos de estudos, ensaios e discussões com políticos, é um equívoco do começo ao fim porque parte de uma doença comum aos intelectuais daquele tempo: a divinização da História. No ensaio “A Regeneração da Dialética”, publicado no livro “O Argumento Liberal”, apesar de analisar a obra de Gerd Bornheim, e compará-la com “Experiência e Cultura”, de Miguel Reale, Merquior faz um elogio subliminar a Hegel. Era claro que isso acabaria acontecendo. A busca de um sentido dentro da própria História levava a crer que a história da salvação humana dependia ninguém menos que do próprio homem. Não existe neste raciocínio o problema de uma intervenção divina ou da graça – algo muito irracional para os padrões iluministas de Merquior. Leitor voraz de Kant, ele acreditava que o sentido da História era imanente – e transcendência uma mera “irracionalidade”. Olavo de Carvalho aponta para o perigo espiritual que esta idéia provoca em “O Jardim das Aflições”:

“Ora, a crença no Sentido da História é comum aos comunistas e aos democratas Ocidentais. Estes não crêem no esquema marxista, na revolução ou no advento da utopia proletária, mas crêem no progresso das instituições, no aperfeiçoamento gradual das leis, na redução progressiva da miséria, na educação universal, na extensão a todos os homens dos benefícios da economia e da cultura modernas. Tanto quanto para os comunistas, o sentido da vida identifica-se, para eles, com a participação do indivíduo na construção da sociedade futura. Divergem apenas nos meios e no tipo de sociedade a que aspiram, mas, tanto quanto os comunistas, não concebem que a vida possa ter algum sentido fora ou acima da História. Para uns e outros, a História e somente a História é a doadora do Sentido à vida humana. É isto, precisamente, o que se denomina a divinização da História. Socialismo e Capitalismo são, assim, as duas seitas em que se cindiu uma mesma religião. De outro lado, é evidente que reduzir o sentido da vida ao sentido da História é encerrá-lo na dimensão temporal, voltando as costas à eternidade”.

Todos sabem onde isso vai acabar: no endeusamento do Estado – ou, na visão ingênua de Merquior, no seu “equilíbrio social”. Vamos voltar ao texto “A Regeneração da Dialética” em que Hegel é tratado com toda a boa educação do mundo. Ao comentar que a consciência humana, com Descartes e Hegel, se tornou à parte de toda a interação do mundo, Merquior escreve que “Hegel fez do cogito não só um primeiro princípio, como um Todo – uma totalidade das totalidades, uma unidade absoluta. Simultaneamente, tentando escapar às dificuldades do platonismo e da metafísica cristã no tocante á justificação do finito, fez do seu Espírito absoluto algo auto-suficiente, porém não atualizado. O Espírito hegeliano só se atualiza em todas as suas possibilidades ao fim de um longo processo: nesse processo, como ‘substância que é sujeito’ , o Espírito se torna progressivamente objeto”. Isto não é apenas uma maneira de demonstrar admiração por Hegel. Merquior está devidamente fascinado pelo idealismo alemão, acreditando que a consciência humana só se concretiza dentro de um longo processo histórico que, inevitavelmente, terminará no progresso e no equilíbrio das instituições. “O Espírito – um ‘eu que é nós’, no dizer de Hegel – é Deus, mas corresponde à consciência histórica do gênero humano (…) Hegel teria sido um criptoofita, um adepto clandestino da seita que, no paleocristianismo, adorou a Serpente como veículo da divinização do homem. O tema gnóstico da alienação positiva exalta o humano, por meio da identidade entre o Espírito e a consciência histórica; o tema gnóstico da retirada de Deus o glorifica ainda mais, pois confia ao homem a própria tarefa de redenção”. Não há nenhuma possibilidade da existência da graça divina neste raciocínio. Com a consciência humana abandonada pelo seu Absoluto – já que Deus se retirou -, o que lhe resta é acreditar na razão que, como faz Merquior citando seu mestre polonês Leszez Kolakowski, “tem de ser ‘capaz de compreender a realidade como gestação da razão’ “. É a ideía de uma ideía, dentro de uma outra idéia – e, obviamente, isso vai terminar mal.

Merquior insiste no erro como se estivesse amando o método do hábito. “Assim, a consciência que apreende o real sabe que esse ato de apreensão é parte, e parte motriz, da realidade”, escreve ele. Não há mais o choque entre a apreensão da realidade e a realidade em si; a luta foi preterida para um dos lados, o que é sempre prejudicial quando se trata da abertura amorosa da alma. É então que vem a conclusão: “Talvez seja possível resumir a questão dizendo que, na dialética do Espírito progressivamente auto-alienante (Espírito objetivo), até a reinteriorização-síntese que coroa todo o processo histórico-teológico (Espírito-absoluto), a filosofia, órgão supremo da conscientização da odisséia do Espírito, não pensa tanto sobre o mundo quanto pensa o mundo”.

O pensamento que deveria refletir sobre o mundo, se torna o próprio mundo. A razão vence tudo, segundo Merquior. E, como o fim último de todo este processo histórico culmina com o Estado, seria coerente com seus propósitos iluministas de esboçar um projeto nacional para um país que nunca teve uma visão adequada deste último. Merquior explica qual seria esta visão em seu livro “A Natureza do Processo”: “A consciência histórica deve ensinar a recusar juntamente duas falácias: a estadólatra e estadófobia. Bobbio resumiu muito bem o problema ao advertir que o estado liberal não deve ser nem um mero guarda de trânsito, como preferem os neoliberais, nem um general, como pretendem os dirigistas ‘à outrance’. O guarda de trânsito se limitaria a tentar prevenir acidentes e trombadas no tráfico volumoso do desenvolvimento econômico e social contemporâneo, a que o estado – e o estado democrático, por definição – não pode ser indiferente. O general tentaria ordenar todas as ações da sociedade a partir de decisões tomadas exclusivamente por ele. No primeiro caso, a sociedade engoliria o estado; no segundo, o estado deglutiria a sociedade. Ora, na lição da história, a relação profunda entre os dois não é de contradição antagônica, e sim de implicação mútua”.

Sua visão equilibrada do Estado é uma doce idéia. Merquior parece se esquecer da sua natureza expansionista, em que, para preservar a natureza secreta do Poder, se desdobra em inúmeros tentáculos de maneira tão sutil que o ataque à alma individual se torna imperceptível. “O estado, no Brasil, não deve se omitir, nem precisa se demitir”, continua ele, “basta que não seja um estado comandado por petrograndistas e ocupado por novos emboabas”. Para seu azar, ele foi justamente pregar este novo Estado no governo de Fernando Collor, repleto de emboabas.

Collor era um homem inteligente e sabia se rodear de pessoas inteligentes, entre elas José Guilherme Merquior. No entanto, eram sujeitos que usavam o dom da inteligência para o proveito próprio. Merquior foi um dos poucos que realmente acreditava que seu projeto daria certo porque era para o bem da nação. Foi ele quem escreveu o discurso de posse de Collor. “O principal redator do discurso de posse foi sem dúvida José Guilherme Merquior”, disse o embaixador e ex-ministro Marcílio Marques Moreira em seu livro-depoimento “Diplomacia, Política e Finanças”. “Gelson (Fonseca, embaixador) deu mais a forma, e Merquior, a substância. De Washington o presidente foi para o Japão e depois para a Europa, e ali se encontrou longamente em Paris, com Merquior, que era embaizador na Unesco. Depois, Merquior foi chamado ao Brasil. O presidente chamou também Vargas Llosa para conversar, porque ele era candidato no Peru, e até certo ponto os dois comungavam as mesmas idéias. Merquior participou da conversa. Ele me reportava tudo, infelizmente até o leito da morte”, explica Moreira.

O encontro de Collor com Merquior e Vargas Llosa tem um relato mais detalhado no texto de José Mário Pereira. Cogitava-se a possibilidade do Ministério de Relações Exteriores para Merquior. Quem também estava presente no almoço era Roberto Marinho, que disse a Pereira: “Não tive oportunidade de conversar sozinho com o Collor. Aliás, tenho pouco intimidade com ele, apesar de conhecê-lo desde pequeno. Mas o Merquior foi prestigiadíssimo no almoço. A toda hora o presidente reportava-se a ele. Pediu-lhe, inclusive, que fizesse o discurso de saudação a Vargas Llosa”.
A nomeação para o ministério desejado não sairia (foi convidado para ser ministro da Cultura, mas recusou alegando que prejudicaria seus rendimentos), mas Merquior não guardou rancores de Collor. Fez mais dois discursos para o presidente, e voltou às suas funções na Unesco. Mesmo com o aparente rompimento de suas idéias em relação ao Plano Collor – uma verdadeira intervenção estatal digna da URSS soviética – o prestígio de Merquior perdurou mesmo após sua morte, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência. FHC defende o papel de Estado que Merquior via como “equilibrado”. Sabemos no que isso deu: em um falso liberalismo no qual os direitos individuais que a lei deveria assegurar são distorcidos, em função dos direitos coletivos, prejudicando o indivíduo. Mais esquerdoso impossível, como mostra Olavo de Carvalho neste trecho longo, mas esclarecedor, de “O Jardim das Aflições”:

“A causa de investir o Estado de autoridade espiritual foi incorporada pelas três formas do Estado moderno: comunista, nazifascista e liberal. As três procuraram com igual afinco substituir-se à Igreja na condução espiritual dos povos: a primeira, pela violência física e psicológica, proibindo cultos, fuzilando religiosos, institucionalizando nas escolas o ensino do ateísmo, fechando templos, nomeando cardeais biônicos para ludibriar os poucos fiéis restantes. A segunda, de maneira ainda mais ostensiva, pelo culto obrigatório da Nação e do Estado. Mas o Estado liberal, que professa nominalmente a liberdade religiosa, é dos três o mais eficiente no combate à religião, como se vê pelo fato de que as massas, tendo conservado sua fé religiosa sob a opressão nazifascista e comunista, facilmente cedem ao apelo das “novas éticas” disseminadas pela indústria de espetáculos das modernas democracias, e abandonam, junto com a religião, até mesmo os preceitos mais óbvios do direito natural: excercendo livremente seus “direitos humanos” sob a proteção do Estado democrático, as mulheres que praticam nos EUA um milhão e meio de abortos por dia logo terão superado as taxas de genocídio germano-soviéticas. Muito mais eficiente do que a tirania de Hitler e Stálin é o regime que, legalizando e protegendo todas as exigências tirânicas e autolátricas de cada ego humano, produz milhares de pequenos Stálins e Hitlers. De outro lado, compensando astuciosamente o desequilíbrio que a liberação desenfreada dos desejos poderia causar, o Estado neoliberal produz novos códigos repressivos que, descarregando a reação violenta do superego em alvos moralmente inócuos (o fumo, os beijos roubados, as cantadas na rua, o machismo, o vocabulário corrente, as piadas), dão um Ersatz de satisfação ao impulso natural da moralidade humana, impedindo-o de expressar numa condenação frontal de um estado de coisas marcado pela impostura obrigatória e universal. Uma sociedade, com efeito, que pune um olhar de desejo e dá proteção policial ao assassinato de bebês nos ventres das mães é, de fato, a mais requintada monstruosidade moral que a Humanidade já conheceu. É claro, ademais, que o Estado neoliberal não faz isso por meios ditatoriais, mas com o apoio e até por exigência dos eleitores no pleno gozo de seu direito de exigir e legislar. Pairando acima de todos, sem nada impor, ele apenas regula sabiamente os conflitos de interesses, que, excitados até a exasperação pelo estímulo incessante ao espirito reivindicatório, só se tornam governavéis mediante o nivelamento por baixo, que termina pela instauração da moral invertida. É claro, ademais, que toda nova reivindicação resulta em novas leis, que cada nova lei resulta em nova extensão da burocracia governante, fiscal e judiciária, e que, assim, passo a passo, movido pela dialética infernal do reivindicacionismo, o Estado, sem deixar de ostentar o prestígio da lenda democrática, acaba por se imiscuir em todos os setores da vida humana, por regulamentar, fiscalizar e punir até mesmo olhares, riso e pensamentos. E, no instante em que regula a vida interior dos indivíduos, eis que o Estado neoliberal, enfim, cumpre à risca o programa hegeliano, instaurando-se como suprema autoridade espiritual, moral e religiosa, reinando sobre as almas e as consciências com o novo Decálogo dos direitos humanos e do politicamente correto”.

Isto foi o que Merquior não previu, e assim o feitiço virou contra o feiticeiro. Sua visão equilibrada de Estado terminou na loucura que se instaurou no Brasil de FHC. Mas qual seria a causa de tamanho equívoco, alarmante para alguém que possuía uma lucidez intelectual única sobre a cultura do país? “Merquior foi a mente mais brilhante da minha geração”, me disse uma vez Bruno Tolentino em uma de suas palestras, “mas seu grande problema era que ele evitava a qualquer custo refletir sobre o problema da Morte. Foi para ele que escrevi ‘A Indesejada’, que foi publicado no meu livro ‘Os Deuses de Hoje'”. Segundo Tolentino, Merquior não enfrentava a morte e, quando soube de seu tumor no cérebro, seu reconhecido “estoicismo” era uma forma de fazer da situação uma espécie de “conta-gotas”. Ele explicita esta relação nos dois primeiros sonetos do ciclo de “A Indesejada”:

“Penso em José Guilherme Merquior
como o deixei certa vez em Paris:
melancólico e ativo, um chafariz
de noções lapidares, do melhor
que até então lhe ouvira. O monitor
de idéias transformado em aprendiz
tardio e prematuro de uma dor
sem sentido, remédio ou cicatriz.
O embaixador na última audiência,
curvado sem querer na reverência
mais inútil que fez… José Guilherme
que eu mandei passear e dei ao verme
sem dar-me conta! Como dói a ausência
que lhe impus quando mais queria ver-me!

2.

Ninguém pensou menos na morte, creio,
do que aquele gnomo; mais ninguém,
que eu saiba, conseguiu passar tão bem,
tão distraído, no lugar mais feio
da esplêndida viagem: seu passeio,
rápido, sem paradas como um trem
direto, iria longe, mais além
dir-se-ia que não. Observei-o
mais de uma vez às voltas com alguém,
algum pobre-diabo a que o recheio
apodrecia, e vi-o sempre alheio,
sem compartir-lhe o drama, sem receio
de que a sorte o tratasse assim também.
Que o castigasse à hora do recreio”.

A tragédia de José Guilherme Merquior é que ele sequer teve tempo de rever suas idéias para, algum dia, reelaborá-las sob outro prisma, sem o muro do dogma. Hoje ele estaria com 60 anos de idade, tempo suficiente para sua maturidade chegar a um ponto que nem D. Marilena Chauí sonharia. Mas a ausência de preocupação dos problemas do espírito, substituindo-os pelo dogma da razão e da História o levou numa encruzilhada. O xis da questão é que seus ideais sócio-liberais influenciaram os burocratas do poder que comandam este país, e se suas intenções eram as melhores, nunca saberemos pois as conseqüências levaram o Brasil a uma crise espiritual sem precendentes na humanidade.

É o que acontece quando se enamora com a Dama Idéia: o sistema acaba matando o mistério da realidade. O Estado mínimo é um mal necessário, e o que o indivíduo tem de fazer é vigiá-lo com todas as armas de sua consciência, pronta para aceitar os enigmas da vida que a razão iluminista não pode explicar. Os verdadeiros problemas que a existência apresenta são insolúveis, e não são em hipótese nenhuma a representação de um fenômeno social, por mais complexo que este possa ser. E se são insolúveis, a única coisa que se pode fazer é tratá-los com carinho, nunca como se fosse um combate em que a ideía soluciona tudo. Quem caça a realidade acaba sendo caçado por ela.

Entretanto, o caso de José Guilherme Merquior deve servir como exemplo. Era um homem digno, brilhante, mas que se deixou levar por seu próprio medo. Sem saber, acabou levando o Brasil ao fundo do poço. Sua morte trágica é a prova que podemos cair nos mesmos erros porque também somos humanos, e também temos medo do inexplicável e do irracional – da realidade implacável que deixa tudo para o verme. O melhor para nós seria o hábito da História e a preguiça do Estado. Contudo, são nos tempos de crise que, entre as trevas, aparecem os primeiros lampejos de luz. A escuridão está aí, densa e compacta, mas devemos estudar a trajetória de Merquior para que nossa consciência não caia no mesmo cadafalso, e assim receber a luz, sem o medo nos impedindo para a aventura heróica da fé.

Sangue imperdoável

fevereiro 25, 2010

Os Imperdoáveis” (1992), de Clint Eastwood, é um dos filmes mais subversivos já feitos. Quando usamos a palavra “subversivo”, não significa que tal pessoa é um “esquerdista”, como o pensamento corrente pode sugerir. A hegemonia da esquerda é tamanha que qualquer um que demonstre respeito pelos valores tradicionais do indivíduo se torna um subversivo. Portanto, Clint Eastwood preenche a todos os requisitos. Mesmo em seu trabalho como ator, nos filmes de Sergio Leone e Don Siegel, ele é o sujeito solitário que vai contra a corrente da multidão, manda tudo para as favas e decide enfrentar o mantenedor de inúteis que é o Estado, com as regras básicas de sobrevivência: coragem, um pouco de astúcia e muitas armas.

Com o passar do tempo, e conforme seus filmes solidificavam sua carreira como diretor, Clint Eastwood se tornou uma espécie de titã manco. Sua importância era inegável para a história do cinema, mas o que ele tinha a dizer? Não seria ele um fascista que defendia a justiça feita com as próprias mãos? Um apologista da violência, misógino que, por ter sido prefeito da cidade de Carmel, era um propagandista da classe dominante?

Todas as perguntas – feitas, obviamente, pelos críticos esquerdistas – foram demolidas em “Os Imperdoáveis”, o filme que deu a Eastwood quatro Oscars e a consagração da maturidade. Era, na verdade, uma película atípica: um western escrito por David Webb Peoples (o mesmo roteirista de “Blade Runner” e “Herói por Acidente”), de ritmo lento e que, aparentemente, contava a mesma história que Eastwood sempre contou – a do pistoleiro misterioso que chega numa cidadezinha do Oeste para uma recompensa e, depois de muitos tiroteios, acaba com a desordem existente no lugar.

Mas é claro que o filme não era isso. “Os Imperdoáveis” era uma espécie de síntese de tudo que Eastwood havia feito no cinema, desde o início, como ator até os notáveis “O Cavaleiro Solitário” (1984) e “Bird” (1988), em que ele se mostrava mais que um bom diretor que tratava de contar apenas uma boa história. A evolução de sua filmografia mostra que ele adquiriu uma segurança impressionante, tanto no estilo como em sua execução, e que, pouco a pouco, mesmo com seus escorregões (a saber, “Bronco Billy” e “Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal”), se torna o diretor do discernimento moral.

Este é apenas o princípio do verdadeiro tema de “Os Imperdoáveis”: o fascínio da violência e como ela está presente na nossa vida, no nosso dia-a-dia. Só por este detalhe, percebe-se que não será um western ordinário. As imagens também denunciam isso. O primeiro plano é de um crepúsculo longo, em que vemos uma casa e um homem cavando uma cova, embaixo de uma árvore. Logo no início, temos um tom de melancolia, do outono de um Oeste que não é o mesmo que John Ford filmava há quarenta anos. Não veremos mais a ascensão de um país, mas sim o princípio do seu ocaso.

O homem que cava a cova é William Munny, do Missouri, que saberemos depois que foi um matador cruel, e tirou vidas de mulheres e crianças. No entanto, só sabemos que ele está enterrando sua mulher, Claudia, que morreu de varíola e deixou dois filhos pequenos para criar. Enquanto isso, na cidade de Big Whisky, no estado de Wyoming, acontece uma tragédia num bordel. Dois vaqueiros mutilam o rosto de uma prostituta, só porque “ela disse que o pinto de um deles era pequenininho”, afirma uma delas. O xerife local, Little Bill (uma interpretação brilhante de Gene Hackman, que lhe valeu um dos poucos Oscars justos da Academia) intervém na situação. “Enforque-os”, diz Sally, a líder das prostitutas. Little Bill olha para os dois vaqueiros amarrados, pede um chicote para seus ajudantes, mas depois pensa melhor ao ouvir do dono do bordel que a prostituta “danificada” tinha um contrato de propriedade. “Você quer fazer uma troca?”, pergunta o xerife ao dono do saloon. Propõe-se então a entrega de seis pôneis dos vaqueiros pelo rosto mutilado da prostituta – já que, segundo as palavras do dono do saloon, “ninguém mais vai ter a coragem de trepar com ela”. Quando um dos assistentes chega com o chicote, Little Bill ri e somente diz: “Acho que não será necessário”.

As prostitutas ficam revoltadas. “Não é porque eles montam em nós como cavalos que vamos deixar eles nos marcarem como cavalos”, afirma Sally. Elas economizam dinheiro para pagar U$$ 1.000 para quem matar os dois vaqueiros. A notícia se espalha e chega aos ouvidos de William Munny através de Kid, um jovem pistoleiro que lhe convida para ser seu parceiro na encomenda. Munny recusa: “Minha mulher me endireitou. Eu era um homem mesquinho e cruel. O whisky me obrigava a fazer estas coisas. Agora não as faço mais. Sou um homem diferente”. Tão diferente que tem de viver de criar porcos doentes numa casinha, com seus dois filhos, onde o vento uiva entre as paredes (Eastwood faz questão de chafurdar seu personagem no estrume). Decide ir atrás da encomenda, “para recomeçar uma nova vida com meus garotos”. Junto com ele está seu antigo parceiro, o negro Ned (Morgan Freeman), que também vai mais pela amizade com Munny, do que propriamente pelo prazer da matança de outros tempos. Mas é o próprio Ned que diz ao ouvir da boca de Munny o que os dois vaqueiros fizeram com a prostituta: “Acho que eles merecem um castigo”. “Retalharam uma mulher, Ned”, conta Munny, “cortaram seu rosto, seus olhos, seu nariz – cortaram até mesmo as tetas dela”. (Quando Kid conta a mesma história para Munny, ele usa as mesmas palavras, trocando apenas “mulher” por “puta”).

A descrição detalhista do primeiro terço do filme se deve ao fato de que Eastwood joga, entre olhares e diálogos, o germe que dá origem à violência. A violência não surge através de uma cólera intempestiva ou de um problema social. Ela começa com a falta de discernimento moral em que o sujeito não sabe mais julgar corretamente uma conseqüência proporcional ao um ato. É o que dá início ao ciclo sangrento do filme e – por que não? – à violência que ronda nosso cotidiano. Como “Os Imperdoáveis” é, no fundo, uma reflexão de como a civilização se mantém através do sangue dos inocentes e dos não-inocentes, fica claro que Eastwood teve de ir ao seu começo. O erro começa com as prostitutas – “Enforque-os, Little Bill” -, continua com o xerife, passa pelo dono do saloon, ultrapassa o Kid (“Cortaram uma puta”) e só se inverte com os dois ex-matadores, William e Ned (“Cortaram uma mulher”). Nem mesmo a própria vítima – chamada sugestivamente de Delilah – quer o banho de sangue que as prostitutas desejam. Quando um dos vaqueiros, arrependido, oferece um de seus melhores pôneis a Delilah, ela permanece em silencio, com o olhar carregado de perdão reprimido, mas não pode expressá-lo porque o grupo a obriga seguir outras ordens – a da vingança total.

Fica claro que a confusão não existiria se não fosse a atuação ineficaz de Little Bill. É através do personagem do xerife que “Os Imperdoáveis” mostra que é também um filme político, em que a moral do indivíduo se opõe à moral do Estado. No caso, Little Bill é exemplo perfeito da psicologia do Estado, pois não sabe sequer aceitar as suas limitações, ao ver que a casa construída por ele próprio não tem um único ângulo reto. Este é o típico comportamento de um burocrata: ele pensa que pode fazer tudo, inclusive, como podemos ver nos casos nazistas e comunistas, denegrir uma pessoa com a simples intenção de manter a ordem.

É o que Little Bill faz continuamente. O episódio com English Bob é exemplar. Pistoleiro inglês e monarquista empedernido, Bob (o soberbo Richard Harris, o melhor bêbado do planeta) chega em Big Whisky em pleno Dia da Independência elogiando a Rainha da Inglaterra. Obviamente, ele está na cidade por causa da recompensa de mil dólares. Little Bill sabe disso pois já foi avisado que a notícia chegou até no Texas. Hackman mostra com muita sutileza como o xerife se sente afrontado com a presença de Bob. Bill manda colocar na entrada da cidade uma placa avisando que é proibido o porte de armas de qualquer espécie (alguém não está tendo uma curiosa sensação de déja-vu?). A sensação de que o Estado se sente fraco quando um grupo de indivíduos (no caso, as prostitutas) procura por uma alternativa ao ver que as leis não asseguram seus direitos, transparece nos olhos de Little Bill ao saber que English Bob está nos seus domínios.

Acompanhado por seus assistentes – um gordo boçal, dois medrosos e um maneta -, Little Bill desarma English Bob e um parceiro deste, o escritor Beauchamp. Desarma é a palavra errada: Little Bill humilha Bob, chutando-o como um cachorro, na frente de toda a cidade. Tudo bem que o inglês é um pistoleiro, igual a qualquer bandido (aliás, fica implícito que, antes de ser xerife, Little Bill foi também um matador), mas a forma como o Estado se impõe sobre o deliquente, com sua violência excessiva, não demonstra nenhum respeito por seu poder, e sim um medo terrível de perder o poder. Poder, Estado e violência são conceitos que pode parecerem sinônimos, mas isso leva a uma série de equívocos. O Poder pode usar a violência como um instrumento de manter a sua natureza secreta; contudo, a violência não é o Poder, e muito menos é uma forma de garantir a força de repressão do Estado. Quanto mais totalitário um governo, mais fraco ele está. Apesar de ser uma cena em que Little Bill se mostra implacável, Eastwood também mostra a sua fraqueza. O Estado está podre por dentro, e não quer reconhecer tal fato. A violência, neste caso, mostra apenas a sua desintegração.

Para sair deste beco sem saída, entra o personagem do escritor Beauchamp, que romantiza a vida de English Bob. É aqui que o filme entra também num terreno perigoso e se sai muito bem: o da desmistificação através do fascínio que a violência provoca nos homens. Tanto Beauchamp como o jovem pistoleiro Kid representam essa condição que seduz, seja um homem da classe-média ou um bandido da favela: a ilusão de que a violência é um poder ímpar. Beauchamp acaba se tornando o biógrafo de Little Bill, que o aceita para justamente criar sua própria lenda, já que ele sente que o fim, de alguma forma, está próximo (em um de seus diálogos, o xerife explica que seu sonho “é ficar na varanda, fumando um bom cachimbo e vendo o pôr-do-sol” – a utopia do bom burocrata).

O fim está na figura de William Munny, mas nem o próprio sabe disso. A única coisa que ele quer é pegar sua parte dos mil dólares. O fantasma de Claudia o persegue e Kid o irrita o tempo todo sobre seu passado: “Foi você quem matou tal pessoa?”. “Quantas pessoas você já matou, garoto?”, pergunta Ned. “Cinco”, ele responde. No dia seguinte, Munny e Ned descobrem que Kid é míope e que não pode ver nada além de cinqüenta metros. O jovem pistoleiro se sente, na melhor expressão que somente os freudianos poderiam criar, “emasculado” de sua função. O rapaz quer matar para provar a si mesmo que é um homem, que detém todo o poder do mundo. Nesse sentido, ele é o duplo de Beauchamp que, na companhia de Little Bill, também sente o indistinguível prazer de ter o poder em tirar uma vida humana.
Little Bill faz este jogo com Beauchamp ao entregar-lhe sua arma e pedir-lhe que atire nele. O olhar do escritor brilha ao tomar a arma: o Poder está em suas mãos, e ele está com alguém poderoso em suas mãos. Triste engano: Bill joga com Beauchamp para mostrar que o Estado se alimenta deste mesmo fascínio, e usa junto com bandidos, como English Bob, para manter a sua ordem aparente – “Sorte sua que não pegou a arma pois eu o teria matado”, afirma calmamente o xerife.

Ele continuará com esta mesma atitude ao encontrar pela primeira vez com William Munny, quando este chega em Big Whisky. Repete os mesmos métodos repressivos – pois o Estado se conforma com sua falta de criatividade – e, Munny, atormentado por uma febre terrível (havia cavalgado sobre a chuva dois dias antes, sem tomar nenhum gole de uísque – essencial nesses momentos), agüenta as pancadas. Ned e Kid – que estavam tirando adiantamentos com as prostitutas – conseguem fugir e levam Munny para uma cabana, enquanto este treme de frio e tem delírios. William sonha com Claudia e as vítimas de quem tirou a vida no passado – além de ter uma visita, segundo o próprio, do Anjo da Morte. “Ele tinha olhos de serpente”, sussurra, ” e me encontrou no rio de luz. E lá também estava Claudia, a face cheia de vermes”. A febre de William Munny é a descida na escuridão da alma humana, no qual a ressureição da vida pode ser seu resultado – mesmo que os meios sejam um tanto ambíguos, como sempre acontece com estes assuntos do espírito.

O personagem de Clint Eastwood é o gênero western encarnado, e o próprio ator-diretor não hesita em desmistificá-lo, para remontar o mito sob outros olhos – muito mais contemporâneos, mas sem perder o contato com a tradição. Ao se recuperar da febre, Munny se depara com Delilah, que cuida de seu rosto e lhe oferece comida. Os dois têm uma conversa, em que Delilah se insinua para Munny, perguntando se ele também não quer um “adiantamento como os outros rapazes”. Munny recusa; a prostituta fala que ele não dormiria com ela, já que compreende que ninguém mais a deseja por causa de suas cicatrizes. “Não é isso”, explica William, “se fosse para dormir com alguém, eu dormira com você, mesmo com suas cicatrizes. Mas não faço isso em respeito à minha mulher”. Ao dizer isso, Munny restaura o valor individual daquela mulher, tratada como cavalo pelos homens, pelo Estado e até mesmo por suas amigas – que a usam somente para um pretexto de revolta.

Pouco a pouco, o espectador percebe que o único nesta história que tem algum discernimento moral é o anti-herói, um homem velho, amargurado, perseguido por um passado macabro que, faça o que quiser, o transforma num mito. Finalmente, Munny, Ned e Kid entram em ação, e conseguem matar um dos vaqueiros numa emboscada, com um tiro na barriga. O infeliz grita: “Vou morrer! Alguém me dá um gole d´agua! Vou morrer!”. Nem mesmo seus companheiros realizam seu último desejo, com medo de levar uma bala. “Dêem um gole d´água, maldição!”, grita Munny. É também nesta cena que Ned desiste da recompensa, pois percebeu que não consegue mais matar ninguém. Ele resolve voltar para casa, com seu rifle Spencer, mas acaba sendo capturado pelos assistentes de Little Bill.

Ao mesmo tempo, Munny e Kid matam o segundo vaqueiro – no caso, quem faz isso é Kid, que mata o homem enquanto ele fazia suas necessidades no banheiro, com dois tiros no peito e outro no rosto. Eles conseguem escapar, e o que se segue é uma das cenas mais sublimes da história do cinema. Munny e Kid estão debaixo de uma árvore, esperando pela prostituta que lhes entregará o dinheiro, as nuvens se formando para uma tempestade. Kid está surpreendentemente assustado. “Matei um homem, matei um homem”, ele balbucia. Aí vem a surpresa: “Ele foi o primeiro homem que matei” (o rosto de pedra de Eastwood ao ouvir essa revelação é de uma falta de surpresa impagável). Munny apenas responde: “Matar um homem é uma coisa infernal. Você tira tudo o que ele tem e tira tudo o que poderia ter”. Como se tentasse ficar conformado com seu ato infernal, Kid fala: “Talvez fosse a sina deles”. Mas a resposta de Munny é uma lição de sabedoria: “É a sina de todos nós”.

A sina de todos nós é a morte, sem dúvida, mas a morte violenta é uma exceção, pelo menos em um mundo ideal, onde o sangue não é a regra geral e o perdão uma forma de solucionar os problemas entre os homens. A violência somente ocorre quando a desordem do Estado atingiu tal limite, que quem acaba pagando o preço é o indivíduo. E como o indivíduo não consegue resolver a desordem do Estado usando os mecanismos deste último, só existem duas coisas que podem reverter o processo: um milagre ou a legítima defesa. Ambos acontecem quando o discernimento moral não existe mais na consciência humana – e é aqui que se aproxima o dia da ira.

A ausência de julgamento justo é marcada pela morte de Ned por Little Bill. A prostituta que entrega o dinheiro a Munny fala que “Ned foi espancado até a morte e, no final, ele falou que você era William Munny, do Missouri, que havia matado mulheres e crianças, que explodiu a ferrovia e roubou vários bancos”. Kid olha para Munny espantado: realmente ele estava na presença de uma lenda-viva. “Ned não matou ninguém”, fala o pistoleiro enquanto, surpresa das supresas, bebe goles silenciosos de uísque, decidindo que está na hora de voltar a ser aquilo que tentou evitar há muito tempo.

A tempestade começa, e William Munny se transforma no Anjo Vingador em pessoa e o duelo final deste western atípico será um Dies Irae, em que a ordem moral se impõe pela ira extrema. O corpo de Ned está em um caixão, na frente do saloon, e lê-se pendurada uma placa: “É isso o que acontece com os assassinos”. Little Bill dá bebidas em nome da casa para aqueles que caçarão os outros dois fugitivos. De repente, surge um rifle e uma pergunta: “Quem é o dono dessa espelunca?”. Um tiroteio começa, um verdadeiro massacre em que Little Bill morre junto com seus assistentes e o dono do saloon. “Eu não mereço morrer dessa forma”, estas são as últimas palavras do xerife (Notar que o Estado sempre acredita que agiu da maneira mais justa possível). O pistoleiro apenas resmunga: “Merecer não tem nada a ver com isso”. Munny sai no meio da chuva, avisando que “quem retalhar qualquer mulher ou matar qualquer inocente, eu vou matar essa pessoa, acabar com a família dele e seus amigos”. A ordem moral foi restituída, mas o equilíbrio foi imposto através da violência, sem nenhum respeito ao perdão.

O que “Os Imperdoáveis” mostra com um realismo agudo é que, num mundo onde a violência é a regra de ouro, não existe espaço para o perdão. Por isso, o seu título original – “Unforgiven” (Imperdoável). O mesmo pode se aplicar no Brasil dos nossos tempos, em que o indivíduo se deixa dominar por um Estado mais incompetente que Little Bill e se ilude no modo de manter ou criar uma segurança precária. A violência desintegra o Estado, mas este se aproveita da bandidagem para renovar constantemente seu poder, impedindo o cidadão do direito da legítima defesa e de uma educação criteriosa de como usar as armas de fogo. O resultado disso é o terrorismo, criado pelo próprio Estado, para manter a sua ineficiência, e que atingiu níveis insanos na atual guerra contra o Afeganistão, em que o Império americano obriga qualquer cidadão a se render aos seus métodos de repressão, tudo em nome da segurança e da ordem. O que poderia ser uma guerra justa vira mais uma forma expansionista de poder, mas mostra também o desgaste desta mesma força.

Sem uma oposição organizada, contra a bandidagem do crime organizado e a bandidagem do Estado, a oposição individual, vendo que o perdão é inútil em um mundo onde o derramamento de sangue não importa mais, parte para a própria violência como o único meio de resolver os problemas. A previsão dessa situação – que assola o Brasil de uma maneira muito peculiar – só pode dar em guerra civil. Com o Estado inoperante e o indivíduo sem nenhuma noção de discernimento moral, o fim é um círculo vicioso de violência que gera violência, sem espaço para paz ou qualquer espécie de tranqüilidade.

A grandeza de “Os Imperdoáveis” está na maneira como Clint Eastwood percebe a ambigüidade deste mundo. William Munny impõe o discernimento moral do modo mais cruel possível, mas o único disponível naquele mundo. O Anjo Vingador fez parte do mesmo vício que tenta extirpar. Infelizmente, estamos cada vez mais distantes de encontrar algum perdão no espírito humano. Mas talvez a lição implícita da obra de Eastwood seja a de que, para evitar a violência e encontrar alguma pureza, será necessário ter o discernamento moral de ver o ser humano tal como ele é, com suas virtudes e defeitos, e não como uma raça de cavalo ou uma estatística na história coletiva. Somente assim, o próprio indivíduo terá noção que sua consciência é um dom e não um meio para o Estado manter a natureza secreta do Poder, e que a violência, mesmo com um propósito justo, é o pior dos meios para se alcançar qualquer fim.

Na companhia das trevas

fevereiro 25, 2010

Não há aflição mais aguda como a retratada no salmo 88:

Ó SENHOR, Deus que me salva,
a ti clamo dia e noite.
Que a minha oração chegue diante de ti;
inclina os teus ouvidos ao meu clamor.
Tenho sofrido tanto que a minha vida
está à beira da sepultura!
Sou contado entre os que descem à cova;
sou como um homem que já não tem
forças.
Fui colocado junto aos mortos,
sou como os cadáveres que jazem ao
túmulo,
dos quais já não te lembras,
pois foram tirados de tua mão.

Puseste-me na cova mais profunda,
na escuridão das profundezas.
Tua ira pesa sobre mim;
com todas as suas ondas me afligiste.

Afastaste de mim os meus melhores
amigos
e me tornaste repugnante para eles.
Estou como um preso que não pode
fugir;
minhas vistas já estão fracas de tristeza.

A ti, SENHOR, clamo cada dia;
a ti ergo as tuas mãos.
Acaso mostras as tuas maravilhas aos
mortos?
Acaso os mortos se levantam
e te louvam?
Será que teu amor é anunciado no
túmulo,
e a tua fidelidade, no Abismo da
Morte?
Acaso são conhecidas as tuas maravilhas
na região das trevas,
e os teus feitos de justiça,
na terra do esquecimento?

Mas eu, SENHOR, a ti clamo por socorro;
já de manhã a minha oração
chega à tua presença.
Por que, SENHOR, me rejeitas
e escondes de mim o teu rosto?

Desde moço tenho sofrido
e ando perto da morte;
os teus terrores levaram-me ao
desespero.
Sobre mim se abateu a tua ira;
os pavores que me causas me
destruíram.
Cercam-me o dia todo como uma
inundação;
envolvem-me por completo.
Tiraste de mim os meus amigos
e os meus companheiros;
as trevas são minha única companheira.

Este é um salmo que poderia ter escrito por Jó: a visão sem concessões de um Deus que, de tão justo, pode mostrar ao homem como o seu amor pode ser dolorosamente ambíguo. Qualquer leitor sensato que meditou dia e noite, sabe sobre o que são os salmos bíblicos – a aflição da humanidade por um Deus que, na sua onipotência, dá amostras silenciosas de compreensão do sofrimento humano. Ou melhor, Ele até possui essa compreensão, mas só nos é revelada – e a palavra é essa mesma, “revelada” – no último instante. Até lá, o que temos são trevas sobre trevas.

O salmo 88 é uma peça brilhante de poesia porque faz o que toda a grande poesia se propõe: expressa, através da linguagem mais simples e através das metáforas mais precisas, a dignidade do sofrimento. O estilo claro, os símbolos comuns ao um cotidiano ritualizado e captados por anos de experiência ao olhar as coisas do mundo tais como elas são, e não como elas deveriam ser, são dons que ligam os salmistas (em especial, o rei Davi) a uma tradição posterior que não fica nada a dever a Dante ou Shakespeare. A Bíblia como um todo, e como elemento de pesquisa estilística e literária, é um exemplo a ser seguido por qualquer um que mexa com a palavra, pois assim a sua escrita e seu espírito se tornam uma construção única, onde forma e conteúdo não serão separados para eventuais estudos “uspianos”.

Mas o que o salmo 88 mostra é algo único na lógica da vida religiosa: o mergulho extremo na escuridão da alma humana – mais precisamente, o encontro do espírito com a realidade implacável: a morte. Não estamos falando da morte física, em que a pessoa se vai desta terra e a única herança deixada é o profundo cheiro de perda – estamos falando da pior morte de todas, aquela que mata o espírito pelo simples motivo que este último sucumbiu às tentações do mundo. E por tentações do mundo, entenda-se que o homem prefere viver um mundo de sonho a enfrentar a realidade, em que a revolta contra a criação leva à apostasia completa: o amor por si próprio substitui o amor a Deus.

Essa não é o caso do salmista em questão – mas reflete o fenômeno ao contar-se entre “os que descem a cova”, que “já não tem mais forças” e que “como os cadáveres que jazem ao túmulo, dos quais já não te lembras, pois foram tirados de tua mão”. Ele não é um dos mortos – Deus o pôs entre eles e, ao que parece, com algum propósito. A ira divina desce sobre sua cabeça como uma bigorna; contudo, por alguma razão, aceita essa ira com a mais desesperada das resignações. Sua aflição ímpar provém desta escolha, em que o salmista tem a consciência de que Deus é, ao mesmo tempo, escuridão e iluminação. Ela é dilacerada por uma dúvida que, mesmo que fique insinuada, é o mote crescente do salmo, e foi a mesma dúvida que somente Paulo teve a coragem de escrever na pedra branca do papel com todas as letras – “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”.

Eis aí o nó górdio da única questão que importa para os que meditam dia e noite sobre a vida do espírito: o problema do Mal. Não há salmo mais poderoso, mais ambíguo, e mais sincero sobre essa questão que atormenta até mesmo inteligências repletas de sutilezas como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Como nestes assuntos, o tempo é apenas uma marcação cerrada, às vezes nem sempre o efeito vem depois da causa, mas ao contrário. Assim, talvez a resposta à pergunta de Paulo esteja neste verso do salmo:

A ti, SENHOR, clamo cada dia;
a ti ergo as tuas mãos.
Acaso mostras as tuas maravilhas aos
mortos?
Acaso os mortos se levantam
e te louvam?
Será que teu amor é anunciado no
túmulo,
e a tua fidelidade, no Abismo da
Morte?
Acaso são conhecidas as tuas maravilhas
na região das trevas,
e os teus feitos de justiça,
na terra do esquecimento?

Deus é por nós, sem dúvida, mas o que acontece quando não fazemos mais parte de seu plano – isto é, quando estamos apenas mortos, sem nenhum contato com seu milagre, com sua fé, com sua esperança? Há um detalhe fundamental neste salmo, um detalhe que o torna mais inusitado, e também mais terrível: o salmista não diferencia mais o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Ao ler o verso “Estou como um preso que não pode fugir”, supõe-se que este sujeito não tem mais nenhuma chance de redenção. “As trevas são minha única companhia”, afirma no assombroso verso final. A justiça de Deus é tão rigorosa que uma infíma possibilidade de luz virou uma piada. Suas chances acabaram porque o mundo dos vivos é o mundo dos mortos.

Porém, é com a morte que se tem o confronto com o verdadeiro sentido da vida. E o sentido se mantém com o único método possível – perguntar, perguntar e perguntar. O questionamento sincero em busca de uma verdade maior, vence todos os sofismas niilistas que o homem inventou para provar sua superioridade – e a dúvida é nada mais, nada menos que aquela esperança disfarçada em chacal que a fé se alimenta todos os dias. “Existir é resistir”, afirmava Dilthey, e a resistência do espírito só se afirma na certeza já vislumbrada pela razão e guardada pela memória. Ao perguntar a Deus se “acaso mostras as tuas maravilhas aos mortos?”, o salmista tem certeza que já viu e experimentou essas mesmas maravilhas, mesmo por cinco segundos. Ele teve em suas mãos o “amor que é anunciado no túmulo”, mas o perdeu de alguma forma. Como ele o perdeu? Aqui reside o mistério: por que Deus, em sua justiça, jogaria um homem tão temente na “terra do esquecimento”?

Seria correr atrás do vento para descobrir qualquer resposta, para citar desta vez o Eclesiastes. O sofrimento humano é algo que não faz sentido – e a realidade implacável da morte é algo que não possui sentido nenhum. A pessoa estava aqui e de repente não está mais – o nada se transforma, no aguilhão da dor, na única coisa palpável. Portanto, quem seria o responsável de usar isso contra nós? Esse é o espinho da questão formulada por Paulo: se Deus é absoluto, como o nada não pode fazer parte Dele, se o nada é também uma parte do Todo?

Não é à tôa que o salmista profere três vezes um pedido de ajuda a Deus – “a ti clamo por socorro”, “a ti ergo as minhas mãos” e “que a minha oração chegue diante de ti”. A dúvida que corrói seu espírito está expressa na pergunta: “Por que, SENHOR, me rejeitas e escondes de mim o teu rosto?”. No mundo dos mortos, Deus não aparece mais, nem para aquele que deseja um pouco de vida. Sua ira é tamanha que “os pavores que me causam me destruíram./ Cercam-me o dia todo como uma inundação”. O infeliz não tem como escapar – sua caminhada rumo à morte parece ser inevitável.

Mas este não é o maior castigo de todos. O salmista é obrigado a mostrar não só a sua desgraça, como também a desgraça dos outros. Neste aspecto, ele não deixa de ser um profeta. O mundo em que “vive” é o da morte, e não parece existir outro. Talvez tudo não passe de um mundo só, um inscrito dentro de um segundo, e assim por diante, como as caixas chinesas. O salmo demonstra, com toda a claridade, o ser humano se deparando com o mistério divino, e este mistério está envolto em muros obscuros que, ainda assim, só estimulam o seu contato com o sagrado.

C.S. Lewis tinha uma sentença impecável sobre isso: “A dor é o grito de Deus em um megafone”. Santo Agostinho, que para resolver o problema do Mal usou de uma pirueta lógica que não fica nada a dever aos seus opositores de Maniqueu, dizia que o Mal fazia parte do caminho de aperfeiçoamento do espírito. No entanto, ele negava que o Mal fizesse parte da natureza de Deus pois “Deus é infinitamente bom”, logo o Mal era algo passivo, que se infiltrava no coração humano através do livre-arbítrio. Ninguém duvida que Agostinho tinha lá a sua razão em alguns pontos, mas seu raciocínio também implicava que, na onipotência divina, Deus, mesmo com sua infinita bondade, não sofria conosco. Ele só foi reparar isso na sua última obra, intitulada oportunamente de “Retratações”; contudo, foi um pensamento que não pode desenvolver com profundidade no final de sua vida, já que estava ocupado com o livro sobre a Trindade. Santo Tomás, com uma lógica tão cerrada quanto a de Aristóteles, ia pelo mesmo caminho, deixando uma brecha de interrogação sobre “as diversas formas que o Mal se transforma, seja no homem, como na natureza, e como essas formas se interagem de uma maneira insólita”.

Um dos fatos mais marcantes na história espiritual da humanidade é que Deus vai tomando consciência completa do sofrimento do homem – e esta é a verdadeira causa da encarnação em Jesus Cristo. O Mal é sofrimento em estado puro, seja ele metafísico, moral ou físico. Os pecados pagos na cruz é o símbolo mais forte que a redenção encontrou para se revelar definitivamente ao homem. No entanto, o sacríficio de Cristo não foi para trazer paz definitiva – foi para intensificar a luta.

Seria Deus, então, um sádico? É uma heresia afirmar isso, mas é uma pergunta que não pode deixar de ser levantada, já que ela pressupõe o questionamento sincero. Em Mateus 10:34, Jesus diz a seus discípulos: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não trazer paz, mas espada. Pois eu vim para fazer que o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora contra a sua sogra”. Ele estava falando sério. A discórdia enigmática não é a da luta social ou familiar, mas a do espirito. “A natureza do cristianismo é a luta”, escreveu Unamuno, “e a luta é sofrimento”. São nos chacais da dúvida que o homem, se quiser seguir uma vida verdadeira e desprovida de futilidades, deve descer entre as trevas, confrontar-se com a morte e então renascer, não só uma vez, mas sucessivamente, para que o espírito se fortaleça e trate tanto as luzes como as sombras com um carinho redobrado. O sadismo divino é mais que um mero capricho: ele se torna a única maneira de Deus mostrar a verdadeira bondade que é, afinal de contas, o grito da dor ampliado no megafone. Isso não é um raciocínio original. Faz parte da tradição espiritual do ser humano, e pode ser visto nos mitos de Ulisses, Enéas, Cristo, chegando até mesmo na Divina Comédia, de Dante Alighieiri, e no Waste Land, de T.S.Eliot. A profundeza é a maior das alturas porque se você teve como única companhia as trevas, sabe distinguir onde está a luz.

Entretanto, para muitos é mais fácil descer de uma vez que subir aos poucos. O século XX talvez foi a época em que o problema do Mal se tornou mais concreto e insolúvel, já que ele ficou surpreendentemente atraente. O mistério chegou a tal ponto que a irracionalidade chegou a ter requintes de lógica, e o pior, de lógica sistemática. Chamaram este malabarismo diabólico de “razão”, e o seu contrário de “sandice”. Um dos primeiros que perceberam esta doença que começava a se formar na consciência humana foi, por um incrível que pareça, um senhor mulato, míope, gago e epilético, nascido aqui mesmo no Brasil e chamado Machado de Assis. Em seu primeiro grande romance, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicado em 1881, há um episódio intitulado “Um delírio”. Brás Cubas, o personagem-defunto que narra suas memórias do caixão, conta que, à beira da morte, teve um delírio fantástico. Ele toma a forma de um barbeiro chinês que sofria os “caprichos de um mandarim”, depois a da Summa Theologica, de Santo Tomás, até ser levado por um hipópotomo até o início dos tempos. Na vastidão do nada, se depara com uma mulher que tinha “a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano”. Ela afirma ser a “Natureza ou a Pandora: sou tua mãe e inimiga”. Brás Cubas fica assustado: nunca havia refletido sobre essa condição ambígua das coisas do mundo. Na continuação da conversa, a mulher dá uma sentença tenebrosa para quem vai partir dessa para a pior – “Eu não sou somente vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera a voluptuosidade do nada”.

É claro que, conforme seguimos o livro, percebemos que Brás Cubas merece tal sentença já que sua vida se resume a uma patética miséria de espírito – algo muito comum na vida intelectual do Brasil atual. Mas Machado de Assis é o primeiro escritor do período realista (e aqui incluo Flaubert e Zola, sendo que Machado é superior a ambos) que, mesmo com toda a ideologia positivista cerceando o espírito, compreende a realidade não como um apanhado relativo de dados científicos ou econômicos, e sim como a realidade simbólica que cerca as vicissitudes do ser humano – como a sociedade brasileira, com sua vaidade de quinta categoria, sufoca a individualidade e a busca sincera da verdade em troca de um pensamento raso, que sequer toca nas profundezas obscuras da vida.

Machado não estava falando apenas do Brasil. Com sua paródia de Schopenhauer na figura de Quincas Borba, ele desprezava qualquer espécie de sistema ideológico que pudesse explicar as lacunas da realidade. A podridão humana era seu assunto favorito, mas sempre narrada com absoluta elegância e tato. Se o salmista do salmo 88 diz que as trevas são sua única companhia porque Deus quis assim, e a única coisa a fazer é suportar, a voluptuosidade do nada é atraente aos nossos Brás Cubas pelo simples motivo do tédio, o spleen que Baudelaire conseguiu preencher com um satanismo tolo. E aqui o Bruxo do Cosme Velho é afiado como as garras de um gavião ao capturar a revolta metafísica, provocada pela falta de sentido da vida, e que termina na revolta do homem contra a criação divina – eixo central da ideologia socialista promulgada por Karl Marx e seus asseclas.

O que nos leva à derradeira pergunta: Por que o homem não se contenta com sua própria condição? A revolta contra a criação divina é uma escolha fútil perto daquele que prefere ir até ao fundo da fragilidade de sua podridão. Mas daí o sujeito é obrigado a se deparar com o maior de todos os medos e o pior de todos os julgamentos: no fim da sua vida, o que você fez para manter a integridade de sua alma? Em um mundo onde luz e escuridão se digladiam a cada segundo, a corrupção parece ser a vitoriosa, e são poucos os que podem dizer, na hora do Último Julgamento, “eu não me vendi”. E aqui a venda pode ser qualquer coisa, do pacto demoníaco ao adultério, mas é principalmente a negação da realidade, substituindo-a por uma ilusão, uma bela mentira que inverte o sentido de tudo e de todos, e fragmenta o espírito em mil pedaços.

A escolha pelo mundo dos sonhos implica na renúncia da luta espiritual, e o que se segue é um efeito em cascata: do indivíduo passa-se para a representatividade social, política e intelectual da sociedade que ele faz parte. O que antes era ordem desemboca em desordem, pelo simples motivo de que a revelação de Deus foi trocada pela revelação do homem que acredita ser Deus. É a mesma coisa que pegar um pedaço de grama e querer vê-lo como um diamante. O resultado é uma percepção do mundo dividida, bifronte, morbidamente esquizofrênica. O grande problema é que isso não é comum em diagnósticos de doentes mentais; é mais notório nos eruditos e intelectuais que acreditam que pensam sobre o País para um bem comum – e todos sabem que de boas intenções o Inferno já não agüenta mais.

Esta é a semente do socialismo, o ópio que intoxicou os cérebros pensantes, como previu o perspicaz Raymond Aron. Seu fundo é diabólico e, como tudo que provém do enxofre, sofre inúmeras metamorfoses, mas o cheiro permanece inalterável. Contudo, a questão não é de acreditar em alguma coisa, e sim em acreditar se esta coisa tem algum sentido. É aqui que entra o complicado assunto da fé, mais especificamente da fé cristã. O salmo 88 é um poema javista, e em seus versos já está implícita aquela fé definida por Paulo: “A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos”. Não obstante, essa certeza está coberta por uma ambiguidade cristalina que, por si mesma, é a própria essência do cristianismo. Eric Voegelin toca o dedo na ferida e, o melhor, a defende, no final de seu “Science, Politics and Gnosticism”:

“Este fiapo de fé [definida por Paulo], na qual tudo fica suspenso na certeza em relação ao ser transcendente e divino, é, de fato, muito tênue. Pouca coisa tangível é dada ao homem. A certeza e a prova das coisas não vistas são certificadas através de nada exceto a própria fé, na qual o homem deve obter pela força de sua alma – e por enquanto não estamos falando do problema da graça. Nem todos são capazes desta resistência espiritual; muitos precisam ajuda institucional, e às vezes nem isso é suficiente. Nós estamos nos confrontando com a situação singular que a fé cristã está cada vez mais ameaçada, à medida que se expande socialmente, e cada vez mais leva o homem sob o controle institucional quando sua essência está claramente articulada. Esta ameaça chegou ao um ponto crítico na Alta Idade Média por causa do expansivo sucesso social. O Cristianismo moldou a instituição dos homens da sociedade Ocidental; e na nova cultura urbana, sob a influência das grande ordens religiosas, sua essência manteve um alto grau de transparência. Coincidentemente com sua grandeza, sua fraqueza também se tornou aparente: grandes massas de homens cristianizados que não eram fortes o suficiente para a aventura heróica da fé se tornaram suscetíveis a idéias que davam um grau maior de certeza sobre o significado de sua existência do que a fé. A realidade do ser como é conhecida em sua verdade pelo Cristianismo é muito díficil de suportar, e a fuga de ver a realidade para construções [de sistema] gnósticos será, provavelmente, sempre um fenômeno amplo nas civilizações que o Cristianismo permeou”.

O espírito cristão deve ter uma força fora do comum para aceitar o mundo como ele é – com todas as suas lacunas, mistérios e ambiguidades. O problema do Mal e a fuga sobre este problema não é algo que se deve pensar alguns minutos por dia. É para se pensar o tempo todo. Já posso escutar um desses leitores obtusos murmurar: “Então, deita no chão e espera a morte chegar”. Aqui tocamos no problema da graça, um problema que, se não for tratado com a humildade suficiente, se torna uma obsessão doentia, típica de orgulhosos enrustidos que gostam de ver a graça como uma competição rumo a São Silvestre. Quando a revelação da graça nos é dada, a maior preocupação não é se fulano de tal é predestinado ou não. O que importa é que algo nos foi dado, muitas vezes sem sabermos, e o díficil não é tê-la, mas mantê-la. Voltamos então à aventura heróica da fé que Voegelin fala, em que o primeiro sintoma da graça é a abertura amorosa da alma à realidade do ser transcendente, em que o homem percebe que sua individualidade é um dom natural e supra natural, e que todos, com muita perseverança e sorte, rumam para o bom caminho da unidade da consciência sobre a unidade da realidade e vice-versa. Quem não compreende que esta abertura amorosa não significa que o mundo está a seus pés, pode confundir o problema da graça com o puro problema da danação, e muitas vezes ao imaginar que se está no caminho da subida, na verdade está próximo do caminho da descida – e da descida sem volta.

Os obstáculos são muitos, e vão da ideologia dogmática até mesmo à própria educação religiosa, como se pode ver nos zumbis educados em igrejas evangélicas ou falsamente católicas. As fugas são as mais inventivas possíveis, e uma das melhores é o diálogo criado por Machado de Assis entre a Razão e a Sandice, logo depois que Brás Cubas acaba de narrar o seu delírio:

” – Não, senhora, replicou a Razão [à Sandice], estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí a de visitas e ao resto.
– Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério…
– Que mistério?
– De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir:
– Hás de ser sempre a mesma coisa…. sempre a mesma coisa…. sempre a mesma coisa…
E, dizendo isso, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando…”

Zombando do discurso iluminista e positivista, Machado de Assis mostra o medo da consciência humana que não quer dar o salto de fé para meditar sobre os dois grandes mistérios: o da vida e o da morte, e de como estas duas estão intimamente relacionadas. O triunfo da Razão sobre a Sandice resulta no irracionalismo, no romance com a Dama Idéia (para utilizar a expressão de Bruno Tolentino) que termina nos homicídios lógicos e absurdos do século XX: os holocaustos judeus, cristãos e russos, alimentados por regimes totalitários como Nazismo e Comunismo. Deu no que deu: a falência espiritual da humanidade em que a morte é um comércio, a vida é uma piada e a cultura é instrumento de propaganda política. O Bem e o Mal foram trocados pelo Poder; a moral deu lugar a uma ética “imparcial”; e a fé – bem, a fé virou lavagem cerebral.

Tudo isso porque o homem não seguiu o exemplo do nosso salmista que, mesmo no mundo dos mortos, não deixava de olhar para cima, enquanto seus pés estavam atolados na lama do chão. Atualmente, o Brasil está cada vez mais próximo de ser esse mundo. Já estamos contados entre àqueles que estão na cova, e provavelmente nem Deus se lembra mais de nós. Será que, algum dia, Ele mostrará a sua fidelidade – ou sua ira? O confronto com as trevas é uma das atitudes mais nobres do espírito humano. E é também um dos mais terríveis. Bob Dylan cantou uma vez : “If the Bible is right, the world will explode” (Se a Bíblia estiver certa, o mundo vai explodir). Que exploda, então. Quem precisa deste mundo quando a procura pela verdadeira ordem está fadada ao fracasso – e é neste fracasso que está contido, surpreendentemente, nosso triunfo?

Elegia ao fim de um mundo

fevereiro 25, 2010

Nunca houve um livro mais mal-interpretado no século XX do que “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. Seus detratores afirmam que é “um livro muito mal escrito”, sem “a angst de um Wagner”, com “insinuações homossexuais”, “uma pura babaquice de criança”, “uma historinha da carrochinha com duendes e elfos”, terminando na mais interessante das conclusões – “mais um negócio que prova o seguinte ditado: a cada minuto nasce um otário”. Mas o pior mesmo são justamente os seus defensores, fãs que levam o mundo que Tolkien criou durante sessenta anos à uma realidade que nunca existiu, fantasiosa, um meio para a fuga da vida que se transforma em estéril fanatismo e em tudo o que seu criador não queria.

Nem “Finnegans Wake” teve essa sorte. Pelo menos, seus (poucos) leitores sabiam que tudo aquilo era um sonho, uma alucinação de trocadilhos que, somente depois de mil e uma leituras, se tornava a famosa aventura da linguagem que Joyce pretendia. Mesmo com a estréia da adaptação cinematográfica de Peter Jackson, um projeto gigantesco com milhões de merchandising envolvidos, a confusão em torno de “The Lord of the Rings”, como o livro é conhecido por seus seguidores no mundo inteiro, ainda impera. As livrarias lotam de pessoas que compram os tomos de 1.500 páginas, com os olhos esbugalhados, perguntando aos vendedores – “Qual é a história deste livro?”. E o vendedor, para explicar até para si mesmo o fato daquele mastodonte ter virado best-seller, fala que é sobre um hobbit chamado Frodo Bolseiro, que tem de destruir um Anel que dará a Sauron, o senhor dos anéis do título, um poder ilimitável sobre a Terra-Média, mundo que, na verdade, não é uma fantasia paralela, mas a Europa de cinco mil anos atrás, muito antes da humanidade pensar em Platão, Aristóteles e Jesus de Nazaré. O que Tolkien desejava com esse fiapo de história é o xis da questão e a origem de toda a desinformação que ronda a sua obra. A sua intenção, desde que participou da Primeira Guerra Mundial, e esboçou a idéia do livro que se tornaria “O Silmarillion”, era criar um novo mito, e um mito que o pudesse se aproximar da verdadeira Criação.

Para isso, temos de conhecer ninguém menos que o próprio Tolkien. Jonh Ronald Reuel Tolkien nasceu na África do Sul, na vila de Bloemfontein, no dia 3 de janeiro de 1892, filho de Arthur e Mabel Tolkien. A orfandadade atingiria o garoto quatro anos depois, com a morte do pai em 1896, por causa de uma febre reumática, contraída em Bloemfontein enquanto o resto da família já havia imigrado para Birmingham, na Inglaterra. Ronald e seu irmão, Hilary, foram educados pela família da mãe, e foi mais ou menos nessa época que o pequeno Tolkien começou a se interessar pela arte de histórias – lia contos de caveleiros, lendas de dragões e muito Hans Christian Andersen. É durante a primavera de 1900 que Mabel Tolkien toma uma decisão que irá influenciar a vida de todos ao seu redor, inclusive a do seu filho Ronald: decide se tornar católica, o que provocou a fúria instantânea no avô de Tolkein, metodista empedernido. As dificuldades financeiras e a pressão da família levaram Mabel ao esgotamento físico, agravado por uma diabetes fulminante que, mal-cuidada, a fez falecer no dia 14 de novembro de 1904.

Duas coisas ampararam o jovem Jonh Ronald da perda devastadora: a religião e a descoberta das línguas, especialmente a galesa. E se não fosse pelo padre Francis Morgan, grande amigo de sua mãe, ele nunca conheceria a mulher que seria sua esposa até o fim da vida: Edith Bratt. Morgan pôs os dois irmãos numa pensão sombria na Duchess Roas, 37, e foi lá que Tolkien conheceu Edith, uma moça bonita, baixa, esguia e de olhos cinzentos, além de ser dois anos mais velha que Ronald.
A história de amor entre J.R.R. Tolkien e Edith Bratt mostra a determinação de um autor que criaria uma dos personagens mais determinados da literatura, Frodo Bolseiro. Prestes a ganhar uma bolsa de estudos pela Universidade de Oxford para o curso de filologia (então Tolkien já tinha escolhido o estudo das línguas como seu meio de vida), Ronald era pressionado pelo padre Morgan a não ver mais Edith até que entrasse na maior idade. Durante quatro anos, Tolkien só se correspondeu com Edith por cartas, e o que era uma aventura amorosa de dois jovens se tornou um romance frustrado, com todas as pieguices e impossibilidades que levam este tipo de romance, por mais impossível que pareça, à perseverança que mantém o espírito vivo. Como os obstáculos fazem parte desse tipo de história, Tolkien, ao voltar de Oxford, escreveu uma carta apaixonada a Edith, pedindo-a em casamento (“Quanto mais até que possamos nos unir diante de Deus e do mundo?”, ele perguntava com aquela impaciência típica dos amantes) – sem saber que ela iria casar-se com um outro homem chamado George Field.

Antes que o leitor pense que Tolkien enfrentou o sr. Field a um duelo, é bom esclarecer que a única coisa que Ronald fez foi voltar para Birmingham, encontrar com Edith e, depois de uma conversa de duas horas, convencê-la a desistir do casamento com George Field. Jonh Ronald não era um temperamento vulcânico, romântico ou mesmo intenso. Era o sujeito mais calmo de Oxford, e seu maior desejo era escrever poemas sobre mitos gaélicos e germânicos. Adorava se reunir com seus amigos, beber cerveja, fumar um cachimbo, recitar versos de “Sir Gawain and The Green Helmet” (sua obra favorita, junto com “Beowulf”). Era Bilbo Bolseiro em pessoa, e sua trânqüilidade no Condado em Oxford só poderia acabar com a Primeira Guerra Mundial.

A experiência da guerra foi crucial para Tolkien. Pela primeira vez, ele se confrontava com o rosto da morte. Antes de embarcar para França, como membro do 13° Batalhão, casou-se com Edith numa quarta-feira do dia 22 de março de 1916. O mesmo batalhão foi dizimiado na Batalha do Somme, e Tolkien, que não foi para a linha de fogo, mas contraiu a “febre das trincheiras”, ficou acamado durante dias numa enfermaria do exército, e foi lá que, com a história de Beren e Luthién, ele deu início à sua mitologia, num livro que só chegaria nas mãos do público mais de sessenta anos depois, com o título de “O Silmarillion”.

Mas foi somente em 1934 que J.R.R. Tolkien pôde dar o primeiro fruto de sua mitologia – um fruto tímido, diga-se de passagem. Até então, “O Silmarillion” era um punhado de páginas desconexas, reunidos sob o vago nome de “O Livro dos Contos Perdidos”, e somente a história de Beren e Luthién o satisfazia plenamente. Era o conto em que contava o que acontecera com ele e Edith, com toda uma linguagem pomposa disfarçando o mito. Não foi à tôa que Tolkien, já velho, pediu ao seu filho Christopher, que o enterrasse com Edith com as lápides escritas somente “Beren” (para Ronald) e “Luthién” (para Edith).

E foi o mesmo Christopher, atualmente o homem que comanda o espólio do pai, o grande responsável pela criação de Bilbo Baggins. Tolkien queria contar uma história ao seu primogênito, mas uma história de sua própria pena. Foi então que, numa noite, entre uma baforada e outra de cachimbo, escreveu a seguinte frase: “Num buraco vivia um hobbit”. Que raios era um hobbit? Então veio a imagem de um ser pequeno, peludo, fumante inveterado de cachimbo que se envolve numa odisséia insólita em que se confronta com um dragão e com um outro ser chamado Gollum, e acaba encontrando um anel mágico. “O Hobbit” foi lançado em 1937, com estrondoso sucesso nas vendas de Natal, transformando-se em um clássico da literatura infanto-juvenil. É um livro claramente escrito para crianças, com uma trama mais ou menos elaborada, personagens superficiais, com uma prosa límpida e clara, mas sem nenhuma amostra que foi feita por um erudito de Oxford. Até hoje, “O Hobbit” é responsável pelo grande número de confusões envolvendo “O Senhor dos Anéis”, pois, em primeiro lugar, todos acham que o segundo é uma continuação do primeiro, já que Bilbo volta a aparecer e descobrimos a verdadeira natureza do anel. No entanto, é um outro grande engano: “O Senhor dos Anéis” não é sequer uma continuação da mitologia que Tolkien pretendia criar – ele é o relato do fim daquele mundo em particular, o mundo de magia que cerca a Terra-Média.

“O Hobbit” era um mero apêndice numa saga que nunca teve a intenção de ter um final feliz. Tolkien sabia que, para um mito ser verossímel, uma dose de tragédia era necessária. E toda a tragédia envolve personagens que confrontam suas vontades individuais com as leis divinas – o que significava, para Tolkien, católico e papista devoto, um homem profundamente religioso, que seu mito lidaria com o velho e bom tema da batalha do Bem contra o Mal.

Claro que a ideía não germinou tão depressa. Apesar dos pedidos do editor Stanley Unwin de um “novo Hobbit”, Tolkien só conseguiu terminar “O Senhor dos Anéis” depois de doze anos de trabalho fatigante. O que o ajudou muito na maturação da ideía foi sua relação com outro erudito, C.S.Lewis. Irlandês de nascimento, Lewis – apelidado pelos amigos de “Jack” – era um profundo conhecedor de mitologia nórdica e de lógica aristotélica, mas sua amizade com Tolkien realmente cresceu por causa de suas preocupações religiosas. Lewis se considerava um ateu, e depois de um tempo tornou-se agnóstico, flertou com o gnosticismo e, segundo o próprio Jack, foi Tolkien quem o ajudou a compreender o cristianismo, numa conversa que aconteceu no dia 19 de setembro de 1931.

O que acontece nessa conversa é um dado biográfico importante na vida de Tolkien para quem quiser entender “O Senhor dos Anéis” direito. Mas, antes, precisamos entender o companheirismo de Tolkien e Lewis, uma das amizades mais frutíferas do século XX, e que mostram aos imbecis de hoje que a lealdade e o respeito entre dois amigos não são, em hipótese nenhuma, uma insinuação homossexual – como pensam muitos ao lerem as passagens entre Frodo e Sam Gamgi em “O Senhor dos Anéis”. Os dois eruditos faziam parte de um grupo de intelectuais em Oxford, chamado “The Inklings”, e tanto Tolkien como Lewis recitavam seus poemas e discutiam sobre os estudos que cada um fazia sobre “Beowulf” ou sobre a natureza do mito. Obviamente, esse era o assunto que mais preocupava Tolkien, e foi justamente numa discussão sobre mitos que foi provada para Lewis, a verdade intrísica do Cristianismo. O biógrafo de Tolkien, Humphrey Carpenter, detalha a conversa fundamental:

Era uma noite tempestuosa, mas eles seguiram em frente, pela Addison´s Walk enquanto discutiam o propósito dos mitos. Lewis, apesar de já ser um crente, ainda não conseguia compreender a função de Cristo no cristianismo, não conseguia perceber o significado da Crucificação e da Ressurreição. Disse que tinha de entender o propósito desses eventos – ou, como diria mais tarde numa carta ao um amigo, ‘como a vida e a morte de Outra Pessoa (quem quer que fosse) há dois mil anos pode ajudar-nos aqui e agora – exceto na medida em que seu exemplo nos possa ajudar’.

À medida que a noite passava, Tolkien e Dyson [um outro amigo dos dois, também cristão] mostraram-lhe que estava fazendo uma exigência totalmente desnecessária. Quando encontrava a idéia de sacríficio na mitologia de uma religião pagã, ele a admirava e se emocionava com ela; a idéia da deidade que morre e renasce sempre tocara sua imaginação desde que lera a história do deus nórdico Balder. Mas dos Evangelhos (diziam eles) ele estava exigindo algo a mais, um significado claro além do mito. Não poderia transferir seu apreço comparativamente tácito pelo mito para a história verdadeira?

Mas, disse Lewis, mitos são mentiras, mesmo que sejam mentiras envoltas em prata.

Não, disse Tolkien, não são.

E, indicando as grandes árvores do bosque de Magdalen cujos ramos se curvavam ao vento, enveredou por uma linha diferente de argumentação.

Você chama uma árvore de árvore, disse, e não pensa mais na palavra. Mas não era “árvore” até que alguém lhe desse esse nome. Você chama uma estrela de estrela, e diz que é só uma bola de matéria que se move numa trajetória matemática. Mas isto é meramente como você a vê. Nomeando e descrevendo as coisas dessa maneira, você está apenas inventando seus próprios termos para elas. E assim como a fala é uma invenção sobre objetos e idéias, assim também o mito é uma invenção sobre a verdade.

Viemos de Deus (continuou Tolkien), e inevitavelmente os mitos que tecemos, apesar de conterem erros, refletem também um fragmento da verdadeira luz, da verdade eterna que está com Deus. De fato, apenas ao fazer mitos, ao se tornar “subcriador” e inventar histórias, é que o Homem pode se aproximar do estado de perfeição que conhecia antes da Queda. Nossos mitos podem ser mal orientados, mas dirigem-se, ainda que vacilantes, para o porto verdadeiro, ao passo que o “progresso” materialista conduz apenas a um enorme abismo e à Coroa de Ferro do poder do mal.

(…)

Quer dizer, perguntou Lewis, que a história de Cristo é simplesmente um mito verdadeiro, um mito que nos afeta da mesma forma que os outros, mas um mito que realmente aconteceu? Nesse caso, disse ele, começo a compreender.

(…)

Doze dias depois, Lewis escreveu ao amigo Arthur Greeves: ‘Acabo de converter-me da crença em Deus à crença definitiva em Cristo – no cristianismo. Tentarei explicar isto em outra ocasião. Minha longa conversa noturna com Dyson e Tolkien teve muito a ver com isso’.

(…)

E Tolkien escreveu no seu diário: ‘A amizade com Lewis compensa muita coisa, e além de dar prazer e conforto constantes me fez muito bem pelo contato com um homem ao mesmo tempo honesto, valente, intelectual – um erudito, um poeta e um filósofo – e um amante, ao menos após uma longa peregrinação, de Nosso Senhor’.

“Por muito tempo, ele foi o meu único público”, disse Tolkien, reconhecendo a dívida que tinha com Jack Lewis. Foi em sua homenagem que ele escreveu o poema que seria o germe de seu pensamento em relação a “O Silmarillion” e ao “O Senhor dos Anéis” – “Mythopoeia”. Ele o leu numa conferência proferida em St. Andrews no dia 8 de março de 1939, dois anos depois do sucesso de “O Hobbit”. Como o tema era justamente “o conto de fada”, parece que Tolkien queria provar ao público e a si mesmo que não era um escritor de livros infantis, mas sim um erudito, que estava “por dentro da língua”, e que podia criar suas próprias teorias sobre a função de um contador de histórias. “Mythopoeia” era o ponto crucial de suas idéias:

“The heart of man is not compound of lies
but draws some wisdom from the only Wise
and still recalls Him. Though now long estranged,
Man is not wholly lost of lordship once he owned:
Man, Sub-creator, the refracted light
through whom is splintered from a single White
to many hues, and endlessly combined
in living shapes that move from mind to mind.
Though all the crannies of the world we filled
with Elves and Goblins, though we dared to build
Gods and their houses out of dark and light,
and sowed the seed of dragons – ´twas our right
(used of misused). That right has not yet decayed:
we make atill by the law in which we´re made”.

(O coração do homem não se compõe de mentiras,
mas retira alguma sabedoria do único Sábio,
e ainda O relembra. Embora há muito alheado,
o Homem não está totalmente perdido ou mudado.
Degradado talvez, mas não estronado,
mantém os farrapos do domínio outrora seu:
o Homem, Subcriador, a luz refratada
através da qual um único Branco se fende
em muitos tons, e infinitamente combinada
em formas vivas que se movem de uma mente à outra.
Embora tenhamos preenchido todas as frestas do mundo
com Elfos e Duendes, ousado moldar
Deuses e suas casas com a escuridão e a luz,
e semeado a semente de dragões – era nosso direito
(usado ou abusado). Esse direito não decaiu:
ainda criamos pela lei na qual fomos criados.)

Tradução de Ronald Eduard Kyrmse

É um poema medíocre, para falar a verdade, mas ali está a idéia que Tolkien desenvolveria com maior amplitude e sucesso em “O Senhor dos Anéis”. Havia um fundo cristão em todo esse exagero de teorias que só poderia dar certo na hora de narrar uma história. “O cristão”, disse ele, “pode agora perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm um propósito, que pode ser redimido. É tão grande a graça que recebeu que agora talvez possa ousar que, com justiça, que na Fantasia ele realmente pode assistir no desdobramento e enriquecimento múltiplo da criação”.

Fica claro, ao ler essa declaração de princípios, que não se pode entender “O Senhor dos Anéis” sem entender o fato de quem era o homem Tolkien e como pensava esse sujeito. Apesar de viver no século XX, J.R.R.Tolkien era alguém que não tinha nada a ver com o pensamento moderno que impregnou nossa civilização. Era um peixe fora da água: católico quando sua Igreja passava pela maior crise espiritual de sua existência durante a Segunda Guerra Mundial, papista quando a figura do Papa era levada a descrédito total, conservador em gostos literários quando todos se impregnavam de “fluxo de consciência” e de “estilos fragmentados”, obecado pela verdade dos mitos quando o mito era utilizado como paródia por James Joyce e T.S.Eliot. Somado a tudo isso, adicione a revolução urbana, a decadência dos valores tradicionais e a sensação que, com o advento do nazismo e a descoberta dos campos de concentração, o fim de um mundo estava se aproximando com o ritmo inexorável do fatalismo. A Europa não seria mais como antes, e realmente a obra de Tolkien exala um profundo cheiro de nostalgia, em que a saudade de um mundo dá lugar ao empobrecimento do espírito humano.

Esse é o assunto de “O Senhor dos Anéis”, e o próprio Tolkien não fazia reservas em confessar o tema central do livro, e não hesitando em colocá-lo lado ao lado dos grandes épicos da literatura, de Homero a Hermann Broch. Num documentário para a BBC, Tolkien, já com seus setenta e oito anos, com o sucesso perseguindo a sua porta (hippies invadiam o seu jardim em Oxford só para perguntar qual era a natureza da estranha erva que Frodo usava para fumar seu cachimbo), escuta a pergunta simples do entrevistador: “Poderia-nos dizer, sr. Tolkien, qual é o verdadeiro tema de ‘O Senhor dos Anéis’?”. E Tolkien dá uma baforada no cachimbo (ele próprio se reconhecia como um hobbit) e responde: “O tema de ‘O Senhor dos Anéis’ é o que todos as epopéias falam sem exceção: a morte inevitável”.

Por morte, entenda-se dor e sofrimento, e esses dois são o cerne do maior problema que persegue o ser humano desde o início dos tempos: o problema do Mal. Moldado por sua visão católica do mundo, Tolkien não queria, em hipótese nenhuma, que seu trabalho fosse visto como uma alegoria ou como mera fantasia. Infelizmente, tanto os seus críticos, como seus defensores, caíram nos dois erros. Com um início banal, mostrando a vida no Condado e nos apresentando Frodo Bolseiro, o sobrinho de Bilbo, o hobbit que roubou de Gollum o anel mágico, “O Senhor dos Anéis” parece que será mais um conto de fadas no melhor estilo “eu acredito em duendes”. Mas é com a entrada do mágico Gandalf, o Cinza, que a história dá sua primeira virada. Gandalf chega na festa de aniversário de Bilbo, que, sem mais, nem menos, dá o anel de presente a Frodo, e desaparece na frente de todos os convidados. O sobrinho fica espantado com o comportamento do tio, mas realmente se assusta quando o mago conta sobre o que é realmente o anel que seu tio lhe dera. Aquele pequeno objeto aparentemente inofensivo é o Um-Anel, forjado entre inúmeros anéis por Sauron, o Lorde das Trevas que vive na Terra de Mordor, e o único que pode dá-lo o poder total.

Estão lançados os dados. Depois dessa revelação, o que se segue são 1.500 páginas em que Frodo Bolseiro terá de destruir o Um-Anel no Monte da Perdição, e para isso ele tem de resisitir aos ataques dos assustadores cavaleiros negros de Názgul, às batalhas contra repelentes orcs, às mordidas de aranhas gigantescas, ao um patético Gollum (que deseja o seu anel de volta a qualquer custo) e ao olho de Sauron, sempre onipresente, sempre misterioso. Claro que esquecemos de um detalhe: Frodo deve resistir à tentação do Anel que, com seu brilho, atrai ao seu portador a ilusão que terá todo o poder do mundo.

A odisséia de Frodo, acompanhado pelos amigos Sam, Pippin e Merrin, é o mote para Tolkien descrever, com minúcias de historiador, um mundo que está prestes a acabar. E neste mundo ele encontrará diversas raças, como os humanos, os elfos e os anões, todos interessados que o anel não caia nas mãos de Sauron. A profusão de seres “exóticos” pode levar o leitor a uma irritação constante – nem mesmo C.S.Lewis, que se inspiraria em Tolkien para criar as suas Crônicas de Nárnia, aguentava mais quando seu amigo começava a ler algumas páginas do livro, e logo suspirava: “Not another fucking elf!“. Mas Tolkien é suficientemente habilidoso para não exagerar nos aspectos estranhos de seus personagens, humanizando-os com os valores comuns a qualquer ser vivo: amizade, lealdade, sacríficio, coragem e livre-arbítrio.

Através de seus encontros pela Terra-Média que Frodo e o leitor se depara com uma galeria memorável: além de Gandalf, temos Aragorn, Boromir, Gamgli, Legolas, Galadriel, Eówen, Theóden, e até mesmo Bill o Pônei. O mal também tem sua força com Saruman, o bruxo que deseja o anel para trair Sauron – e só por aí, temos a noção de que acontecerá uma guerra extraordinária. Porque “O Senhor dos Anéis” é, em resumo, a crônica de uma guerra – mais precisamente, a Guerra do Anel, evento histórico, segundo a mitologia de Tolkien, que será o ponto derradeiro da Terra-Média.

Mas é na visão peculiar que Tolkien tem do problema do Mal que ele agarra os leitores pelo pescoço. Talvez junto com “Doutor Fausto”, de Thomas Mann, “O Senhor dos Anéis” é o livro que retrata, com maior claridade, como o Mal se dissemina no coração das pessoas. Sauron nunca aparece fisicamente; porém, ele está sempre presente, seja através dos cavaleiros de Názgul, das nuvens escuras que dominam a paisagem da Terra-Média ou na visão do próprio olho quando Frodo toma sua decisão solitária no Trono da Visão. No entanto, Sauron não é o Mal encarnado. Temos também Gollum, Saruman, os monstros Balrog e Laracna – e, obviamente, o próprio Anel que é um personagem com vida própria, e tenta os inocentes com suas promessas falsas de poder absoluto.

Pouco a pouco, o que deveria ser uma história para crianças na mente do leitor desavisado, se torna uma saga sobre o Poder. E onde estará a ordem, o Bem que tudo move? É aqui que entra a visão católica de Tolkien. No momento em que se menos se espera, do lugar mais improvável, da pessoa menos preparada, vem a luz. Quem, em sã consciência, pode imaginar que será um anão peludo que carregará tamanho fardo? Isso lembra uma outra história, quando disseram de um sujeito que pregava sobre um outro reino – O que vem de bom de Nazaré? O Mal é onipresente, mas não é onipotente. No decorrer da história, vemos fiapos de luz entre as trevas, traços de esperança quando tudo parecia estar perdido, decisões certas quando tudo caminhava para o lado errado. O Bem sempre aparece do modo mais insólito, mais ilógico, mais alucinante – e mais dolorido. Não são decisões feitas com simples mágica ou fugas da realidade. Gandalf, por exemplo, é mais um sábio que entende a lógica do mundo do que propriamente um mago superpoderoso: na hora em que enfrenta o demônio Balrog, ele não usa um truque sequer. Frodo, ao perceber que o seu mundo acabará de qualquer maneira mesmo se cumprir sua missão, decide realizá-la sozinho para que as coisas não tenham um fim trágico, e a única coisa que torna a resolução mais suportável é a ousadia de Sam em acompanhá-lo até a Terra de Mordor.

Tolkien trata, em seu livro de “fantasia”, da busca de um sentido, da restauração de uma ordem. A vida se trata de uma interminável peregrinação, de uma aventura única em que todos têm uma missão, e ela deve ser cumprida, não importa o quão impossível. Assim, o que se tem nas mãos é uma dessas experiências-limites da literatura em que o prazer da leitura transforma “O Senhor dos Anéis” numa obra única no século XX pela capacidade de prender o leitor a cada página que passa, esperando que essa jornada termine de alguma maneira – mesmo sentindo a implacável tristeza de que tudo que estamos lendo é, no fundo, uma elegia ao fim de um mundo.

Nesse ponto, a adaptação de Peter Jackson para o cinema preserva o espírito do livro, tanto em suas virtudes, como em seus defeitos. No entanto, não tem a profundidade que Tolkien acreditava que sua obra deveria ter. Por isso, não é o filme-evento que todos estão esperando, mas sim um brilhante exemplo de cinema de aventura, com Jackson jogando a câmera para lá e para cá como um bola de pingue-pongue, os efeitos especiais exagerando o visual, às vezes poético, muitas vezes “kitsch” e “new age”.

Mas isto não diminui a intenção do filme – ou da própria obra de Tolkien. “O Senhor dos Anéis” deve ser lido por todos que acreditam que a literatura é uma forma de compreender os problemas do espírito, sem nenhum preconceito ou ideologia dogmática. Mesmo a visão católica do autor é perspassada por um profundo senso de lealdade que nos dias de hoje faz falta. Como o próprio Aragorn diz: “Enquanto formos leais aos outros e a nós mesmos, a Sociedade do Anel se manterá”. No mundo atual, depois do Terror de 11 de setembro, a saga de J.R.R.Tolkien, com sua alucinante sinceridade, deve ser mantida para aqueles que desejam educar para o futuro pessoas que não se rendam à tentação do Poder, e muito menos sucumbir ao horror do Mal, mesmo que tudo leva à escuridão e à morte.

É sempre complicado fazer uma lista dos melhores do ano porque, entre mortos e feridos (especialmente neste ano de 2001), os sobreviventes são poucos. Por exemplo, em matéria de filmes, nós tivemos filmes bons, mas nenhum espetacular, que fizesse a nossa ida ao cinema um verdadeiro ritual para um outro mundo um pouco mais pleno. Assim, a minha escolha nesse quesito foi a de selecionar três filmes que tivessem algo a ver com o Natal ou o Ano Novo, mas que também não tratasse essas duas datas daquela forma tonta que vemos sempre. É bom sempre lembrar que o Natal é o nascimento de Cristo, não uma data a mais para comprar presentes – e foi este nascimento que possibilitou a permanência da nossa existência até o presente momento.

Já no quesito livros, foi também um ano esquisito, dominado por obras infanto-juvenis, os “esotéricos” de sempre e poucos romances que valessem a pena ler para descobrir algum novo talento. Por isso, acabei escolhendo um clássico universal, uma reedição de um dos maiores poemas já feitos e um romance contemporâneo de um autor que merece ser descoberto nestas plagas, para quem quiser entender direito o que acontece nos EUA.

O ano de 2001 foi fabuloso para o mundo da música – em especial, para aquele gênero musical chamado rock-n´-roll. Foi um álbum de rock que captou com incrível precisão e assustadora clarividência o Terror de 11 de setembro, e foram suas variantes (e discípulos) que deram forma musical à desordem espiritual que comanda a mente dos alucinados que querem nos governar.
De resto, é melhor ler quais foram as minhas escolhas, e, para aqueles que não gostaram delas, é bom sempre lembrar Brás Cubas: que tomem um piparote nas orelhas. (adoro isso!!!)


CINEMA

“De Olhos Bem Fechados”, de Stanley Kubrick (Eyes Wide Shut, EUA/Inglaterra, 1999): Este é um dos filmes mais sinceros já feitos sobre o verdadeiro significado do Natal. O último filme de Stanley Kubrick tem todas as características de seus filmes anteriores: a análise fria da natureza humana, a obsessão pelo poder, a visão macabra do sexo. Mas o fato de se passar no Natal e contar a história de um casal que passa por um inferno existencial no meio de uma Nova York fantasmagórica dá um outro sentido à película. Na verdade, é o testamento de um homem que sabe que vai morrer e decidiu fazer sua ode ao Espírito que vence a vida danificada. Nada mais natalino, nada mais cristão. Você pode não gostar de Kubrick, pode achar Tom Cruise patético (o que é uma verdade) e Nicole Kidman mais uma bonequinha de luxo, mas não pode negar o fato que este é um filme profundo, com múltiplos significados e não pode ficar à beira do esquecimento.

“Cortina de Fumaça”, de Wayne Wang e Paul Auster (Smoke, EUA, 1996): Para lembrar como era Nova York antes do Terror de 11 de setembro. Esta é uma das mais bonitas histórias de Natal já feitas, e a melhor – sem nenhum pieguismo, pregação ou sermão de qualquer espécie. Muitos vão me xingar ao ver algo cristão numa história em que o sujeito engana uma velha cega e rouba uma máquina fotográfica, mas o que Paul Auster quer mostrar é a ambiguidade deste mundo e como algo ruim pode se tornar, no fim, algo bom. Além disso, é uma agradável meditação sobre a ocorrência do acaso e das coincidências nas nossas vidas, com grandes interpretações de Harvey Keitel e William Hurt. E como se isso não bastasse, tem Tom Waits na trilha sonora, cantando a antológica “Innocent When You Dream”.

“Cantando na Chuva”, de Stanley Donen e Gene Kelly (Singin´in the Rain, EUA, 1956): O último grande musical é também o maior antídoto contra a tradicional depressão que ataca qualquer um que preste nas festas de fim de ano. Porque não há algo mais depressivo do que ver o ano que passou e que, de novo, o ano que vem pouca coisa mudará. “Cantando na Chuva” resolve esse problema em menos de duas horas e sem insultar a sua inteligência ou optar pelo mundo dos sonhos. Ao contrário, é um filme que faz a defesa da realidade contra o reino da ilusão, e de uma forma engenhosa. Gene Kelly, Donald O´Connor e Debbie Reynolds fazem as coreografias mais sofisticadas já vistas, e com uma simplicidade rara. É um filme que lava a alma e faz você encarar o próximo ano com alguma esperança.


LIVROS

“A Divina Comédia”, de Dante Alighieri: Dante é Dante, e “A Divina Comédia” é um dos monumentos que o leitor deveria ler sempre, especilmente nesses momentos em que a desordem quer imperar. A história de salvação do poeta Dante, guiado por Virgílio, para chegar ao Paraíso e encontrar sua amada Beatriz nos fascina até hoje, porque mostra um poema que sempre se questiona na sua linguagem, retrata uma época muito parecida com a nossa (ou será que todas as épocas se parecem?) e nos ensina que a vida, apesar de todo o som e fúria que os idiotas querem nos mostrar, tem um sentido e um propósito: Deus. Poema cristão por excelência, “A Divina Comédia” é a prova de que a humanidade serviu para alguma coisa.

“Elegias de Duíno”, de Rainer Maria Rilke: Diz a lenda que Rilke escreveu boa parte de suas Elegias na mesma torre em que Dante teria escrito o Inferno de sua Comédia. Verdade ou não, as “Elegias de Duíno”, agora relançadas pela Editora Globo na tradução de Dora Ferreira da Silva, está para o século XX o que Dante foi para a Idade Média. Somente Eliot e Yeats podem se equiparar a tamanha limpidez poética. Preciso e vago, terno e assustador, esperançoso e pessimista, Rilke conseguiu com estes poemas celebrar a grande função da poesia: no meio do abismo, cantar é sempre uma forma de vitória.

“O Arco-Íris da Gravidade”, de Thomas Pynchon: Cada país tem as Elegias de Duíno que merece, e foi este escritor que não dá entrevistas, não tira fotos e lança um livro de sete em sete anos que fez isso pelos EUA. Publicado em 1973, “O Arco-Íris da Gravidade” pode parecer, por baixo de seu estilo túrgido e repleto de referências pop, uma mera bíblia da paranóia, mas numa leitura mais atenta percebe-se que Pynchon criou a elegia sobre a perda da transcendência e, por um estranho paradoxo, a procura por ela. É um livro de leitura díficil, mas depois de superados os primeiros obstáculos, ninguém fica imune a uma entropia tão sedutora.


MÚSICA

“Love and Theft”, Bob Dylan: Sem dúvida, o grande álbum de 2001. Lançado justamente no dia 11 de setembro, “Love and Theft” forma, junto com “Time Out of Mind” (1997), a atual fase de Dylan, em que ele é o spoudaios do rock. Uma viagem por uma América sombria e enigmática, com um senso de humor perverso que mostra, aos 60 anos, que tudo o que vier agora é lucro. Há também espaço para canções de amor e de adeus, como “Sugar Baby”, o remorso esperançoso (se isso pode existir) de “Mississippi” e o apocalipse vislumbrado em “Highwater”. Simplesmente extraordinário.

“No More Shall We Part”, Nick Cave and The Bad Seeds: Com este álbum, o australiano Nick Cave se tornou o crooner do desespero, o legítimo sucessor de Leonard Cohen. É tristeza faixa-a-faixa, da benevolência de “As I Sat Sadly By Her Side”, passando pela redenção de “Hallellujah” e terminando no exílio de “Darker with the Day”. Mas não pense que este é um disco para depressivos. Na realidade, é uma intensa meditação das relações do homem com Deus, e depois do lirismo de “The Boatman´s Call”, Cave realiza sua obra mais coesa e legítima, não deixando de lado o passado ruidoso dos Bad Seeds na furiosa “Oh My Lord”.

 “Let It Come Down”, Spiritualized: O nome parece ser de grupo gospel, mas é um engano. É o projeto megalomaníaco de Jason Spaceman, multinstrumentista que tem como sonho ser o Phil Spector do século XXI. Orquestras suntuosas, paredes de guitarras, vocais angustiados, corais grandiloquentes: tudo em “Let it Come Down” tende ao exagero, mas é justamente esse exagero que dá a dose de loucura que uma obra de arte precisa. E é no meio da insanidade que nasce, surpreendentemente, a sinceridade da vida do espírito.

“Amnesiac”, Radiohead: O que Thomas Pynchon fez para a literatura americana, Thom Yorke & Cia. fizeram para a música pop. Paranóia, desilusão, vazio espiritual – tudo isso está retratado nos cinco discos desta banda inglesa. “Ok Computer” e “Kid A” podiam ser discos excelentes e incompletos, mas é com “Amnesiac” que o Radiohead mostra a que veio. Canções como “Pyramid Song”, “You and Whose Army” e “Like Spinning Plates” falam de uma descida aos infernos que tem muitos sons, e todos eles muito estranhos e surpreendentemente belos.

“O Escritor Por Ele Mesmo”, Bruno Tolentino: Este disco é somente Bruno Tolentino lendo seus poemas, sozinho, errando e gaguejando às vezes, mas sempre com aquela dor justa que sua obra mostra em livros como “As Horas de Katharina” e “A Balada do Cárcere”. O desprezo que a crítica cultural dá ao homem que escreveu “Ao Divino Assassino” (um dos maiores poemas da literatura brasileira), mostra que o Brasil deveria ser expurgado do planeta. Quando Tolentino declama “Vou prosseguir e vou sobreviver”, não há mais nada a fazer exceto curtir o sofrimento e deixá-lo passar. Se você não tem, compre; e se você não tem como comprar, se vira. É um disco indispensável.

 “When The Pawn…”, Fiona Apple: É sempre bom ter uma mulher na lista. P.J. Harvey, Tori Amos e Fiona Apple provam que as fêmeas não são fragéis, e muito menos fúteis, como afirma Hamlet. “When the Pawn…” (na verdade, um poema quilométrico que tomaria o espaço desta coluna; é por isso que o título dela é um de seus versos) é o segundo álbum de Apple, uma moça de 23 anos que mostra uma maturidade impressionante. Ela não hesita em insistir nos seus erros (“I´m gonna make a mistake/ Gonna make another detour”, canta na irônica “A Mistake”) ou expor sua ternura (na delicada “Love Ridden”). Mas as duas melhores canções deste álbum mostram aquela condição obscura que Dante tanto fala quando se trata de uma mulher e de um homem: “The Way Things Are” (“How can I fight when we´re on the same side?/ How can I fight beside?”, declama com uma segurança trágica esta perguntinha impertinente) e “I Know” em que, diante do silêncio do amado, ela só pode concluir que qualquer “eu te amo” é obsoleto. Uma pérola a ser redescoberta.

“Fragments of a Rainy Season”, John Cale: O Velvet Underground não era somente Lou Reed. Era também John Cale, o músico que fez esse álbum que tem todas as qualidades de um bom disco de Natal: triste, alegre e lembra uma paisagem coberta pela neve. Composições sobre poemas de Dylan Thomas, canções sobre medo e morte, todas encadeadas por um piano delicado e sem firulas. É de uma beleza terrível, e a grande prova disso é a versão assustadora de “Hallellujah”, o clássico de Leonard Cohen, que nos coloca frente-a-frente com a realidade implacável: a de que todos nós, algum dia, teremos de morrer.


“Foi assim o nascimento de Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, mas, antes que se unissem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. Por ser José, seu marido, um homem justo, e não querendo expô-la à desonra pública, pretendia anular o casamento secretamente. Mas, depois de ter pensado nisso, apareceu-lhe um anjo do Senhor em sonho e disse: ‘José, filho de Davi, não tema receber Maria como sua esposa, pois o que nela foi gerado procede do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e você deverá dar-lhe o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo de seus pecados’.”

(Mateus 1: 18-21)