O cadafalso da inteligência brasileira

fevereiro 25, 2010

I sought a theme, and sought for it in vain.
I sought it daily for six weeks or so
Maybe at last, being but a broken man,
I must be satisfied with my heart, although
Winter and Summer till old age began
My circus animals were all on show,
Those stilted boys, that burnished chariot,
Lion and women and the Lord knows what.

W.B.Yeats, “The Circus Animals´Desertion”

Na vida intelectual de um país, qualquer manifestação, por mais honrosa que seja, de compreender a cultura onde está inserido, acaba caindo na lâmina difusa da faca de dois gumes. É o caso de José Guilherme Merquior, famoso ensaísta e diplomata, que morreu aos 49 anos de idade, um dos desaparecimentos mais trágicos que o Brasil já teve. Brilhante e precoce intelectual, a vida de Merquior foi marcada pelo estigma de “enfant-terrible”, pelo estilo claro na exposição de idéias filosóficas e na análise de obras literárias, passando pela depuração na política liberal. Foi também um polemista incrível, que travou uma luta contra o grupo da Maria Antônia da USP (entre eles, D. Marilena Chauí), mas sem perder a elegância que faltava aos reis esquerdosos daquelas bandas. Mostrou que o psicanalista Eduardo Mascarenhas propalava absurdos e, no fim da vida, já alquebrado pela doença, quis realizar um projeto de nação, o último que o país teve, e que falhou por causa de um temor em enfrentar a imprevisibilidade da vida do espírito.

Contudo, ao mesmo tempo que Merquior quis incentivar a inteligência brasileira, pondo-a para funcionar por conta própria, ele acabou sendo, na sua vida, e depois, com sua morte prematura, o cadafalso inconsciente dela. É verdade que isto é uma tese polêmica, e tentarei prová-la com a ajuda do ensaio de José Mário Pereira, “O Fenômeno Merquior”, publicado no livro “O Itamaraty na Cultura Brasileira” e disponível na internet no site de Olavo de Carvalho, e da leitura da própria obra de Merquior que, apesar da brevidade da existência, foi surpreendentemente vasta, com 25 livros que passeavam por literatura, artes plásticas, ciência política, filosofia e diplomacia cultural.

Antes, preciso fazer um comentário pessoal, como autor desta investigação. Nunca conheci Merquior pessoalmente (até porque quando morreu eu tinha apenas doze anos de idade), mas tenho uma dívida intelectual com ele. Entre meus quinze e dezesseis anos, fui marxista por cerca de uma semana – ou pelo menos, um marxista enrustido, o que é pior do que ser guerrilheiro, se você ver sob uma determinada perspectiva. Li meu “Manifesto Comunista”, minha “Ideologia Alemã”, estava pronto para mergulhar no primeiro tomo empoeirado de “Das Kapital”, jogado entre as traças na antiga biblioteca da família. O que talvez me fascinou em Marx e Engels foi o estilo que não dizia coisa com coisa, o que é realmente muito sedutor quando se é um adolescente que não pensa coisa com coisa. Mas também estava lendo Machado de Assis, e como me interessava muito mais pela linguagem clara, irônica e ambígua do Bruxo de Cosme Velho, procurei livros que me ajudassem na análise de sua obra. Acabei me deparando, graças a um presente de meu pai, com o livro “De Anchieta a Euclides – Breve História da Literatura Brasileira”, assinado por um tal de José Guilherme Merquior, que dedicava mais de duzentas páginas a Machado. Não eram meras duzentas páginas: cada uma delas tinha uma observação direta, precisa, coordenando cada parte da obra machadiana com o retrato da história do século XIX. Para um jovem de dezesseis anos, aquilo era um assombro.

Resolvi, então, procurar mais sobre Merquior – e, milagre dos milagres, havia uma pilha de tomos dele na biblioteca de casa, dos quais fiz questão de surrupiá-los, mesmo com protestos dos chefes da família. Eram vários livros com títulos bastante promissores: “Razão do Poema”, “A Astúcia da Mímese”, “O Argumento Liberal”, “A Natureza do Processo”, “De Praga a Paris”, “De Anchieta a Euclides”, uma coletânea de crítica literária e uma monografia sobre ideologia e cultura chamada “O Véu e a Máscara”. O resultado destas leituras é que Merquior me mostrou, com uma agudeza rara, que o marxismo não levava a nada. Seu “O Argumento Liberal”, uma das melhores introduções ao pensamento liberal que li na minha vida, me apresentou a Vico, Ernst Gellner, Celso Lafer, Raymond Aron, Tocqueville e também (digo isso como contraponto) a D.Marilena Chauí. Já sua crítica literária me fez chegar a autores como Eliot, Cannetti, Musil, Murilo Mendes, João Cabral e Bruno Tolentino.

Desde que soube da memorável polêmica em que Merquior provou em detalhes que D. Marilena citava sem aspas, e na íntegra, o filósofo francês Claude Lefort, vi que se tratava de um homem com uma coragem intelectual ímpar. Hoje, este fato memorável, que mostra a picaretagem por trás dos filósofos da USP, está relegado na fogueira do esquecimento. O próprio Merquior é alvo de homenagens pálidas, como a do suplemento especial Mais!, do jornal Folha de São Paulo, conhecido pela publicidade faceira que dá às idéias uspianas. Até agora, o único texto que tratou Merquior com a justiça necessária é o de José Mario Pereira, mas, apesar de ser um depoimento comovente, em certos momentos ele descamba para a hagiografia.
Antes de analisar a obra de José Guilherme Merquior para depois descobrir seu encurralamento intelectual, temos que retratar o impacto da chegada do garoto-prodígio no mundo das idéias brasileiras. Com apenas vinte e um anos de idade, Merquior já tinha publicado vários artigos de crítica literária no suplemento cultural do Jornal do Brasil. Na década de 60, três anos antes da revolução de 1964, Merquior representava uma nova geração de críticos que substituiria os centauros que eram Otto Maria Carpaux, Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção e Eugenio Gondim. Eram impressionantes em seus textos a facilidade que ele tinha em passar da literatura para a estética, desta para a política, retornando através da filosofia para fazer sua conclusão. Seu estilo era exemplar por não simplificar o tema, discutindo a idéia até o ponto que se tornasse legível e legítima aos olhos do leitor. Nunca impunha sua visão de mundo, pelo menos não de forma explícita; nesse aspecto, era um diplomata por natureza, e a carreira que seguiu no Rio Branco foi só uma confirmação. Contudo, a grande vantagem de Merquior em relação a seus novos pares, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, era que ele visava compreender o fenômeno social e estético como um problema, nunca como uma solução. Isso, no entanto, foi no início da carreira intelectual. Com o passar do tempo, Merquior, apesar de todo o seu pluralismo e tolerância com outras idéias, se firma no propósito em acreditar numa razão histórica, nitidamente influenciada pelo Iluminismo (era um fã de Voltaire, de quem trouxe um pesado busto na sua primeira viagem à Europa) e por Hegel, e que o sentido desta história é imanente a ela. Portanto, era lógico – essa palavra que fascinava tanto Merquior – que este sentido se projetasse em um progresso, onde a liberdade, a democracia e a igualdade tivessem um papel fundamental. E, no meio disso tudo, havia o equilíbrio do Estado. Para se ter este desejado progresso, seria necessário elaborar um projeto de nação e para a nação, onde o equilibrio estatal traria a igualdade natural.

Merquior começou como crítico literário e é em seus ensaios sobre Rilke, Drummond e Murilo Mendes que podemos perceber as sementes de dois problemas:1) Sua análise da poesia destes autores, reconhecidamente metafísicos (mesmo Drummond, em sua fase de “A Rosa do Povo”, mostra que sua desordem política é também uma desordem da alma), não aborda o problema religioso com profundidade. Para ele, a transcendência está no aspecto estético da obra, em que a forma deve casar com conteúdo. Dessa forma, Merquior já dá amostras do seu futuro namoro com o estruturalismo, no qual vai se afiliar, mesmo que de forma independente, por causa de seu futuro professor, Claude Levi-Strauss; 2) Sua completa falta de consciência quanto às falhas de seu próprio racionalismo que apareciam nas entrelinhas de suas análises. Ao destrinchar “Elegias de Duíno”, de Rilke, Merquior aceita o mistério que envolve a obra, mas se arrisca em explicá-lo através de sua forma, acreditando ela estar interligada ao conteúdo. A grande virtude de seu amor pelas idéias é que Merquior não suportava desonestidade intelectual; era por isso que identificava num piscar de olhos quem copiava quem, como foi no caso de D. Marilena Chauí e Claude Lefort. Contudo, é esse mesmo amor que o levava a não considerar a poesia como a linguagem mais profunda que existe para representar a vida do espírito, limitando-a somente como um fenômeno estético, pois o espírito não está presente na razão imanente dos Iluministas. José Mário Pereira diz em seu relato memorialístico que Merquior ia à Igreja da Cantuária, no Rio, e apreciava a arquitetura e as pinturas exibidas, com olhar extasiado pela beleza, apesar de, provavelmente, se questionar no seu íntimo sobre os aspectos religiosos.

Infelizmente, isto não fica provado na sua obra. Merquior tinha pavor de quem se opusesse à sua razão histórica e estética. Os títulos de seus dois primeiros livros demonstram isso: “Razão do Poema” e “A Astúcia da Mímese”, esta inspirada na famosa expressão “astúcia da razão”, de Hegel, um homem que entendia bem deste assunto. Quem quisesse colocar o insólito no debate intelectual, como o instinto, experiências transcendentais ou transfigurativas, ele não hesitava em dar um peteleco e catalogar o sujeito de “irracional”, como se a razão em que acreditava fosse a única que prestasse. Favor não confundir isso com desonestidade intelectual. Merquior nunca foi um plagiador, mas um brilhante transmissor de idéias como o Brasil nunca teve. Sua obra é coerente com sua vida pessoal e pública como diplomata e homem de idéias, e se por acaso este texto der a impressão que tudo que ele fez foi em vão, seria um erro lamentável da minha parte, não do leitor. O esforço de Merquior, em tão pouco tempo, foi hercúleo num país que não teve igual para seu trabalho. Mas foi esse esforço de querer fazer o bem que nos expôs para sempre ao mal que nos persegue desde do nosso descobrimento.

A crítica literária de Merquior é recheada de momentos brilhantes. Seus ensaios sobre Drummond e João Cabral figuram entre os melhores da fortuna crítica destes autores. A visão em torno de Machado de Assis é a melhor introdução aos estudos literários de Antonio Cândido, Raymundo Faoro, Jonh Gledson e Roberto Schwartz. Foi ele quem deu o aviso pioneiro da poesia de Francisco Alvim e Bruno Tolentino, então em seus primeiros livros. Sua admiração por Robert Musil era exasperante, chegando ao ponto em que ele preteria Eliot por causa de seu “pensamento irracional”.

Mas o que deixa o leitor aturdido é a maneira como Merquior via a cultura como um todo orgânico que tinha suas metamorfoses e nunca se petrificava em um sistema ideológico. Foi isso que o salvou de uma influência marxista, já que para ele, Marx havia reduzido todo o sentido da História numa luta de classes que terminava em ditadura, não em liberdade. Desde o início, tinha uma visão democrática do processo histórico, e foi esta visão que o botou numa série de suspeitas no Itamaraty: Seria ou não um esquerdista? É certo que Merquior ajudou numa exposição de fotografia cubana, mantinha correspondência intensa com Leandro Konder (de quem era amigo desde dos vinte anos) e depois teria contato freqüente com Darcy Ribeiro, mas tachar um homem com a grandeza intelectual de Merquior de “esquerdista” é, francamente, um insulto. Contudo, sua política de boas relações com a esquerda foi curiosamente manipulada pelos próprios esquerdistas – em especial, os paulistas -, que afirmarvam que ele era “reacionário”, “cabeça da ditadura” e, talvez o golpe mais sujo, “guru de Fernando Collor”.

Merquior suportava a esquerda porque, desde do início de sua carreira, sabia que ela teria um papel importante no seu projeto sócio-liberal. Em uma carta ao então presidente José Sarney, citada por José Mário Pereira, ele comenta que “Cuba não oferece maiores perigos na América do Sul”, por isso deveriam reatar relações com o governo de Fidel Castro, como um “gesto de grande charme para a esquerda”. “Eles ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que ‘pô, esse Sarney não é assim tão reaça…’ “. Numa outra carta, também endereçada a Sarney, Merquior escreve: “Temos que servir certos gestos simpáticos à esquerda, embora – ça va sans dire – sem comprometer a linha moderada, social-liberal, que presidiu a nova república. Uma ‘apertura a sinistra’, sem exagero”.

São por trechos como esse que percebemos como os esquerdosos são ingratos. Merquior dava de bandeja o poder àqueles que, durante anos, reclamaram de perseguições e exílios. A pergunta que não quer calar: Ele sabia que isso seria o fim de uma ordem política no Brasil? O que fica patente, ao ler os escritos de Merquior, sejam sobre política ou literatura, é sua ingenuidade. Ele não era malicioso, mas acreditava piamente que seu projeto socio-liberal ajudaria o Brasil a recuperar os rumos da democracia depois de vinte anos de ditadura militar. Mas para descobrir onde está enterrado o erro, temos que ver alguns de seus textos sobre ideologia e simbolismo, publicado enquanto fazia doutorado na London School of Economics em 1978.

O nó gordio da questão em torno do “fenômeno Merquior” é que ele analisava tudo sob o dogma da complexidade social. Assim, ficava praticamente míope ao fundo maior de problemas que apresentavam seus estudos sobre ideologia e simbolismo. Seu mergulho no mar parava ao se deparar com os corais – e ele não tinha coragem de ir adiante. Há um medo secreto em seus textos de ficar consciente dos problemas do espírito. Isto fica claro na sua análise sobre ideologia, em que usa a metáfora do véu e da máscara. O véu cobria a visão de quem fazia e atuava nos interesses de determinada ideologia; a máscara era a face de quem via de fora e percebia o efeito nocivo dos dogmas ideológicos. Para Merquior, no entanto, o véu e a máscara se tornaram um muro que o protegia com seus dogmas do temor do irracional e do místico. Observem o que ele escreve sobre Jung:

“Quanto a Jung, o cabeça de um renascimento romântico na teoria dos símbolos, seu rompimento com Freud deve ser encarado como um gesto essencialmente pré e não pós-freudiano. A despeito do valor heurístico limitado, mas real, da fantasia arquetípica, Rieff mostra a verdade de modo contundente ao nos convidar a olhar para Jung como um estudioso fundamentalmente reacionário, em cuja obra a erudição teológica protestante, numa lamentável inversão, passa a atacar o que antes fora seu orgulhoso incentivo: o racionalismo crítico. A atitude cúltica de Jung para com a religião e com a cultura, sua “sabedoria” balsâmica, sua prosa tipo sábio e seu furor anticiência não forma mais do que os derradeiros arrebóis do “humanismo literário em sua forma mais vingativa” – e, como tal, algo que mais merece ser desmascarado do que louvado. De qualquer modo, o homem que escreveu tantos estudos eruditos sobre um conjunto tão vasto de símbolos e de suas transformações (bem como sobre os símbolos de transformação) encarava de fato o simbolismo como força sagrada, não como objeto de estudo crítico. Por isso, é mais do que conveniente aceitar o que ele diz e procurar alhures por princípios, e não simples pistas, de descoberta e explicação de questões simbólicas”.

Claro que a teoria jungiana não é inatacável, mas Merquior fala mais neste trecho sobre o que o assusta do que propriamente o que ele defende. Seu maior medo é a vida do espírito se infiltrando na sua amada razão, e assim ele vê o simbolismo como um objeto crítico, apenas com seu sentido relativo, esquecendo-se do absoluto e de seu contato entre o humano e o divino. Além disso, critica Jung por seu “furor anticiência”, o que não correspionde aos fatos, pois o suíço foi o primeiro a procurar o físico Wolfgang Pauli para elaborar sua teoria da sincronicidade.

Isto só foi uma amostra dos temores de Merquior. No entanto, não se pode duvidar que Merquior sempre foi um crítico cultural que atendia corretamente à sua própria definição, explicitada no livro “As Idéias e as Formas” (título que, por si só, é uma professão de fé ao estruturalismo): “um ensaísta que analisa, de maneira original, no todo ou na parte, a cultura em que vive”. Infelizmente, ele ficou apenas na parte – o todo foi deixado para trás, ou pior, o todo ficou nas mãos do fenômeno social.

É aqui que a porca torce o rabo. O projeto sócio-liberal de Merquior, elaborado durante doze anos de estudos, ensaios e discussões com políticos, é um equívoco do começo ao fim porque parte de uma doença comum aos intelectuais daquele tempo: a divinização da História. No ensaio “A Regeneração da Dialética”, publicado no livro “O Argumento Liberal”, apesar de analisar a obra de Gerd Bornheim, e compará-la com “Experiência e Cultura”, de Miguel Reale, Merquior faz um elogio subliminar a Hegel. Era claro que isso acabaria acontecendo. A busca de um sentido dentro da própria História levava a crer que a história da salvação humana dependia ninguém menos que do próprio homem. Não existe neste raciocínio o problema de uma intervenção divina ou da graça – algo muito irracional para os padrões iluministas de Merquior. Leitor voraz de Kant, ele acreditava que o sentido da História era imanente – e transcendência uma mera “irracionalidade”. Olavo de Carvalho aponta para o perigo espiritual que esta idéia provoca em “O Jardim das Aflições”:

“Ora, a crença no Sentido da História é comum aos comunistas e aos democratas Ocidentais. Estes não crêem no esquema marxista, na revolução ou no advento da utopia proletária, mas crêem no progresso das instituições, no aperfeiçoamento gradual das leis, na redução progressiva da miséria, na educação universal, na extensão a todos os homens dos benefícios da economia e da cultura modernas. Tanto quanto para os comunistas, o sentido da vida identifica-se, para eles, com a participação do indivíduo na construção da sociedade futura. Divergem apenas nos meios e no tipo de sociedade a que aspiram, mas, tanto quanto os comunistas, não concebem que a vida possa ter algum sentido fora ou acima da História. Para uns e outros, a História e somente a História é a doadora do Sentido à vida humana. É isto, precisamente, o que se denomina a divinização da História. Socialismo e Capitalismo são, assim, as duas seitas em que se cindiu uma mesma religião. De outro lado, é evidente que reduzir o sentido da vida ao sentido da História é encerrá-lo na dimensão temporal, voltando as costas à eternidade”.

Todos sabem onde isso vai acabar: no endeusamento do Estado – ou, na visão ingênua de Merquior, no seu “equilíbrio social”. Vamos voltar ao texto “A Regeneração da Dialética” em que Hegel é tratado com toda a boa educação do mundo. Ao comentar que a consciência humana, com Descartes e Hegel, se tornou à parte de toda a interação do mundo, Merquior escreve que “Hegel fez do cogito não só um primeiro princípio, como um Todo – uma totalidade das totalidades, uma unidade absoluta. Simultaneamente, tentando escapar às dificuldades do platonismo e da metafísica cristã no tocante á justificação do finito, fez do seu Espírito absoluto algo auto-suficiente, porém não atualizado. O Espírito hegeliano só se atualiza em todas as suas possibilidades ao fim de um longo processo: nesse processo, como ‘substância que é sujeito’ , o Espírito se torna progressivamente objeto”. Isto não é apenas uma maneira de demonstrar admiração por Hegel. Merquior está devidamente fascinado pelo idealismo alemão, acreditando que a consciência humana só se concretiza dentro de um longo processo histórico que, inevitavelmente, terminará no progresso e no equilíbrio das instituições. “O Espírito – um ‘eu que é nós’, no dizer de Hegel – é Deus, mas corresponde à consciência histórica do gênero humano (…) Hegel teria sido um criptoofita, um adepto clandestino da seita que, no paleocristianismo, adorou a Serpente como veículo da divinização do homem. O tema gnóstico da alienação positiva exalta o humano, por meio da identidade entre o Espírito e a consciência histórica; o tema gnóstico da retirada de Deus o glorifica ainda mais, pois confia ao homem a própria tarefa de redenção”. Não há nenhuma possibilidade da existência da graça divina neste raciocínio. Com a consciência humana abandonada pelo seu Absoluto – já que Deus se retirou -, o que lhe resta é acreditar na razão que, como faz Merquior citando seu mestre polonês Leszez Kolakowski, “tem de ser ‘capaz de compreender a realidade como gestação da razão’ “. É a ideía de uma ideía, dentro de uma outra idéia – e, obviamente, isso vai terminar mal.

Merquior insiste no erro como se estivesse amando o método do hábito. “Assim, a consciência que apreende o real sabe que esse ato de apreensão é parte, e parte motriz, da realidade”, escreve ele. Não há mais o choque entre a apreensão da realidade e a realidade em si; a luta foi preterida para um dos lados, o que é sempre prejudicial quando se trata da abertura amorosa da alma. É então que vem a conclusão: “Talvez seja possível resumir a questão dizendo que, na dialética do Espírito progressivamente auto-alienante (Espírito objetivo), até a reinteriorização-síntese que coroa todo o processo histórico-teológico (Espírito-absoluto), a filosofia, órgão supremo da conscientização da odisséia do Espírito, não pensa tanto sobre o mundo quanto pensa o mundo”.

O pensamento que deveria refletir sobre o mundo, se torna o próprio mundo. A razão vence tudo, segundo Merquior. E, como o fim último de todo este processo histórico culmina com o Estado, seria coerente com seus propósitos iluministas de esboçar um projeto nacional para um país que nunca teve uma visão adequada deste último. Merquior explica qual seria esta visão em seu livro “A Natureza do Processo”: “A consciência histórica deve ensinar a recusar juntamente duas falácias: a estadólatra e estadófobia. Bobbio resumiu muito bem o problema ao advertir que o estado liberal não deve ser nem um mero guarda de trânsito, como preferem os neoliberais, nem um general, como pretendem os dirigistas ‘à outrance’. O guarda de trânsito se limitaria a tentar prevenir acidentes e trombadas no tráfico volumoso do desenvolvimento econômico e social contemporâneo, a que o estado – e o estado democrático, por definição – não pode ser indiferente. O general tentaria ordenar todas as ações da sociedade a partir de decisões tomadas exclusivamente por ele. No primeiro caso, a sociedade engoliria o estado; no segundo, o estado deglutiria a sociedade. Ora, na lição da história, a relação profunda entre os dois não é de contradição antagônica, e sim de implicação mútua”.

Sua visão equilibrada do Estado é uma doce idéia. Merquior parece se esquecer da sua natureza expansionista, em que, para preservar a natureza secreta do Poder, se desdobra em inúmeros tentáculos de maneira tão sutil que o ataque à alma individual se torna imperceptível. “O estado, no Brasil, não deve se omitir, nem precisa se demitir”, continua ele, “basta que não seja um estado comandado por petrograndistas e ocupado por novos emboabas”. Para seu azar, ele foi justamente pregar este novo Estado no governo de Fernando Collor, repleto de emboabas.

Collor era um homem inteligente e sabia se rodear de pessoas inteligentes, entre elas José Guilherme Merquior. No entanto, eram sujeitos que usavam o dom da inteligência para o proveito próprio. Merquior foi um dos poucos que realmente acreditava que seu projeto daria certo porque era para o bem da nação. Foi ele quem escreveu o discurso de posse de Collor. “O principal redator do discurso de posse foi sem dúvida José Guilherme Merquior”, disse o embaixador e ex-ministro Marcílio Marques Moreira em seu livro-depoimento “Diplomacia, Política e Finanças”. “Gelson (Fonseca, embaixador) deu mais a forma, e Merquior, a substância. De Washington o presidente foi para o Japão e depois para a Europa, e ali se encontrou longamente em Paris, com Merquior, que era embaizador na Unesco. Depois, Merquior foi chamado ao Brasil. O presidente chamou também Vargas Llosa para conversar, porque ele era candidato no Peru, e até certo ponto os dois comungavam as mesmas idéias. Merquior participou da conversa. Ele me reportava tudo, infelizmente até o leito da morte”, explica Moreira.

O encontro de Collor com Merquior e Vargas Llosa tem um relato mais detalhado no texto de José Mário Pereira. Cogitava-se a possibilidade do Ministério de Relações Exteriores para Merquior. Quem também estava presente no almoço era Roberto Marinho, que disse a Pereira: “Não tive oportunidade de conversar sozinho com o Collor. Aliás, tenho pouco intimidade com ele, apesar de conhecê-lo desde pequeno. Mas o Merquior foi prestigiadíssimo no almoço. A toda hora o presidente reportava-se a ele. Pediu-lhe, inclusive, que fizesse o discurso de saudação a Vargas Llosa”.
A nomeação para o ministério desejado não sairia (foi convidado para ser ministro da Cultura, mas recusou alegando que prejudicaria seus rendimentos), mas Merquior não guardou rancores de Collor. Fez mais dois discursos para o presidente, e voltou às suas funções na Unesco. Mesmo com o aparente rompimento de suas idéias em relação ao Plano Collor – uma verdadeira intervenção estatal digna da URSS soviética – o prestígio de Merquior perdurou mesmo após sua morte, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência. FHC defende o papel de Estado que Merquior via como “equilibrado”. Sabemos no que isso deu: em um falso liberalismo no qual os direitos individuais que a lei deveria assegurar são distorcidos, em função dos direitos coletivos, prejudicando o indivíduo. Mais esquerdoso impossível, como mostra Olavo de Carvalho neste trecho longo, mas esclarecedor, de “O Jardim das Aflições”:

“A causa de investir o Estado de autoridade espiritual foi incorporada pelas três formas do Estado moderno: comunista, nazifascista e liberal. As três procuraram com igual afinco substituir-se à Igreja na condução espiritual dos povos: a primeira, pela violência física e psicológica, proibindo cultos, fuzilando religiosos, institucionalizando nas escolas o ensino do ateísmo, fechando templos, nomeando cardeais biônicos para ludibriar os poucos fiéis restantes. A segunda, de maneira ainda mais ostensiva, pelo culto obrigatório da Nação e do Estado. Mas o Estado liberal, que professa nominalmente a liberdade religiosa, é dos três o mais eficiente no combate à religião, como se vê pelo fato de que as massas, tendo conservado sua fé religiosa sob a opressão nazifascista e comunista, facilmente cedem ao apelo das “novas éticas” disseminadas pela indústria de espetáculos das modernas democracias, e abandonam, junto com a religião, até mesmo os preceitos mais óbvios do direito natural: excercendo livremente seus “direitos humanos” sob a proteção do Estado democrático, as mulheres que praticam nos EUA um milhão e meio de abortos por dia logo terão superado as taxas de genocídio germano-soviéticas. Muito mais eficiente do que a tirania de Hitler e Stálin é o regime que, legalizando e protegendo todas as exigências tirânicas e autolátricas de cada ego humano, produz milhares de pequenos Stálins e Hitlers. De outro lado, compensando astuciosamente o desequilíbrio que a liberação desenfreada dos desejos poderia causar, o Estado neoliberal produz novos códigos repressivos que, descarregando a reação violenta do superego em alvos moralmente inócuos (o fumo, os beijos roubados, as cantadas na rua, o machismo, o vocabulário corrente, as piadas), dão um Ersatz de satisfação ao impulso natural da moralidade humana, impedindo-o de expressar numa condenação frontal de um estado de coisas marcado pela impostura obrigatória e universal. Uma sociedade, com efeito, que pune um olhar de desejo e dá proteção policial ao assassinato de bebês nos ventres das mães é, de fato, a mais requintada monstruosidade moral que a Humanidade já conheceu. É claro, ademais, que o Estado neoliberal não faz isso por meios ditatoriais, mas com o apoio e até por exigência dos eleitores no pleno gozo de seu direito de exigir e legislar. Pairando acima de todos, sem nada impor, ele apenas regula sabiamente os conflitos de interesses, que, excitados até a exasperação pelo estímulo incessante ao espirito reivindicatório, só se tornam governavéis mediante o nivelamento por baixo, que termina pela instauração da moral invertida. É claro, ademais, que toda nova reivindicação resulta em novas leis, que cada nova lei resulta em nova extensão da burocracia governante, fiscal e judiciária, e que, assim, passo a passo, movido pela dialética infernal do reivindicacionismo, o Estado, sem deixar de ostentar o prestígio da lenda democrática, acaba por se imiscuir em todos os setores da vida humana, por regulamentar, fiscalizar e punir até mesmo olhares, riso e pensamentos. E, no instante em que regula a vida interior dos indivíduos, eis que o Estado neoliberal, enfim, cumpre à risca o programa hegeliano, instaurando-se como suprema autoridade espiritual, moral e religiosa, reinando sobre as almas e as consciências com o novo Decálogo dos direitos humanos e do politicamente correto”.

Isto foi o que Merquior não previu, e assim o feitiço virou contra o feiticeiro. Sua visão equilibrada de Estado terminou na loucura que se instaurou no Brasil de FHC. Mas qual seria a causa de tamanho equívoco, alarmante para alguém que possuía uma lucidez intelectual única sobre a cultura do país? “Merquior foi a mente mais brilhante da minha geração”, me disse uma vez Bruno Tolentino em uma de suas palestras, “mas seu grande problema era que ele evitava a qualquer custo refletir sobre o problema da Morte. Foi para ele que escrevi ‘A Indesejada’, que foi publicado no meu livro ‘Os Deuses de Hoje'”. Segundo Tolentino, Merquior não enfrentava a morte e, quando soube de seu tumor no cérebro, seu reconhecido “estoicismo” era uma forma de fazer da situação uma espécie de “conta-gotas”. Ele explicita esta relação nos dois primeiros sonetos do ciclo de “A Indesejada”:

“Penso em José Guilherme Merquior
como o deixei certa vez em Paris:
melancólico e ativo, um chafariz
de noções lapidares, do melhor
que até então lhe ouvira. O monitor
de idéias transformado em aprendiz
tardio e prematuro de uma dor
sem sentido, remédio ou cicatriz.
O embaixador na última audiência,
curvado sem querer na reverência
mais inútil que fez… José Guilherme
que eu mandei passear e dei ao verme
sem dar-me conta! Como dói a ausência
que lhe impus quando mais queria ver-me!

2.

Ninguém pensou menos na morte, creio,
do que aquele gnomo; mais ninguém,
que eu saiba, conseguiu passar tão bem,
tão distraído, no lugar mais feio
da esplêndida viagem: seu passeio,
rápido, sem paradas como um trem
direto, iria longe, mais além
dir-se-ia que não. Observei-o
mais de uma vez às voltas com alguém,
algum pobre-diabo a que o recheio
apodrecia, e vi-o sempre alheio,
sem compartir-lhe o drama, sem receio
de que a sorte o tratasse assim também.
Que o castigasse à hora do recreio”.

A tragédia de José Guilherme Merquior é que ele sequer teve tempo de rever suas idéias para, algum dia, reelaborá-las sob outro prisma, sem o muro do dogma. Hoje ele estaria com 60 anos de idade, tempo suficiente para sua maturidade chegar a um ponto que nem D. Marilena Chauí sonharia. Mas a ausência de preocupação dos problemas do espírito, substituindo-os pelo dogma da razão e da História o levou numa encruzilhada. O xis da questão é que seus ideais sócio-liberais influenciaram os burocratas do poder que comandam este país, e se suas intenções eram as melhores, nunca saberemos pois as conseqüências levaram o Brasil a uma crise espiritual sem precendentes na humanidade.

É o que acontece quando se enamora com a Dama Idéia: o sistema acaba matando o mistério da realidade. O Estado mínimo é um mal necessário, e o que o indivíduo tem de fazer é vigiá-lo com todas as armas de sua consciência, pronta para aceitar os enigmas da vida que a razão iluminista não pode explicar. Os verdadeiros problemas que a existência apresenta são insolúveis, e não são em hipótese nenhuma a representação de um fenômeno social, por mais complexo que este possa ser. E se são insolúveis, a única coisa que se pode fazer é tratá-los com carinho, nunca como se fosse um combate em que a ideía soluciona tudo. Quem caça a realidade acaba sendo caçado por ela.

Entretanto, o caso de José Guilherme Merquior deve servir como exemplo. Era um homem digno, brilhante, mas que se deixou levar por seu próprio medo. Sem saber, acabou levando o Brasil ao fundo do poço. Sua morte trágica é a prova que podemos cair nos mesmos erros porque também somos humanos, e também temos medo do inexplicável e do irracional – da realidade implacável que deixa tudo para o verme. O melhor para nós seria o hábito da História e a preguiça do Estado. Contudo, são nos tempos de crise que, entre as trevas, aparecem os primeiros lampejos de luz. A escuridão está aí, densa e compacta, mas devemos estudar a trajetória de Merquior para que nossa consciência não caia no mesmo cadafalso, e assim receber a luz, sem o medo nos impedindo para a aventura heróica da fé.