Na companhia das trevas

fevereiro 25, 2010

Não há aflição mais aguda como a retratada no salmo 88:

Ó SENHOR, Deus que me salva,
a ti clamo dia e noite.
Que a minha oração chegue diante de ti;
inclina os teus ouvidos ao meu clamor.
Tenho sofrido tanto que a minha vida
está à beira da sepultura!
Sou contado entre os que descem à cova;
sou como um homem que já não tem
forças.
Fui colocado junto aos mortos,
sou como os cadáveres que jazem ao
túmulo,
dos quais já não te lembras,
pois foram tirados de tua mão.

Puseste-me na cova mais profunda,
na escuridão das profundezas.
Tua ira pesa sobre mim;
com todas as suas ondas me afligiste.

Afastaste de mim os meus melhores
amigos
e me tornaste repugnante para eles.
Estou como um preso que não pode
fugir;
minhas vistas já estão fracas de tristeza.

A ti, SENHOR, clamo cada dia;
a ti ergo as tuas mãos.
Acaso mostras as tuas maravilhas aos
mortos?
Acaso os mortos se levantam
e te louvam?
Será que teu amor é anunciado no
túmulo,
e a tua fidelidade, no Abismo da
Morte?
Acaso são conhecidas as tuas maravilhas
na região das trevas,
e os teus feitos de justiça,
na terra do esquecimento?

Mas eu, SENHOR, a ti clamo por socorro;
já de manhã a minha oração
chega à tua presença.
Por que, SENHOR, me rejeitas
e escondes de mim o teu rosto?

Desde moço tenho sofrido
e ando perto da morte;
os teus terrores levaram-me ao
desespero.
Sobre mim se abateu a tua ira;
os pavores que me causas me
destruíram.
Cercam-me o dia todo como uma
inundação;
envolvem-me por completo.
Tiraste de mim os meus amigos
e os meus companheiros;
as trevas são minha única companheira.

Este é um salmo que poderia ter escrito por Jó: a visão sem concessões de um Deus que, de tão justo, pode mostrar ao homem como o seu amor pode ser dolorosamente ambíguo. Qualquer leitor sensato que meditou dia e noite, sabe sobre o que são os salmos bíblicos – a aflição da humanidade por um Deus que, na sua onipotência, dá amostras silenciosas de compreensão do sofrimento humano. Ou melhor, Ele até possui essa compreensão, mas só nos é revelada – e a palavra é essa mesma, “revelada” – no último instante. Até lá, o que temos são trevas sobre trevas.

O salmo 88 é uma peça brilhante de poesia porque faz o que toda a grande poesia se propõe: expressa, através da linguagem mais simples e através das metáforas mais precisas, a dignidade do sofrimento. O estilo claro, os símbolos comuns ao um cotidiano ritualizado e captados por anos de experiência ao olhar as coisas do mundo tais como elas são, e não como elas deveriam ser, são dons que ligam os salmistas (em especial, o rei Davi) a uma tradição posterior que não fica nada a dever a Dante ou Shakespeare. A Bíblia como um todo, e como elemento de pesquisa estilística e literária, é um exemplo a ser seguido por qualquer um que mexa com a palavra, pois assim a sua escrita e seu espírito se tornam uma construção única, onde forma e conteúdo não serão separados para eventuais estudos “uspianos”.

Mas o que o salmo 88 mostra é algo único na lógica da vida religiosa: o mergulho extremo na escuridão da alma humana – mais precisamente, o encontro do espírito com a realidade implacável: a morte. Não estamos falando da morte física, em que a pessoa se vai desta terra e a única herança deixada é o profundo cheiro de perda – estamos falando da pior morte de todas, aquela que mata o espírito pelo simples motivo que este último sucumbiu às tentações do mundo. E por tentações do mundo, entenda-se que o homem prefere viver um mundo de sonho a enfrentar a realidade, em que a revolta contra a criação leva à apostasia completa: o amor por si próprio substitui o amor a Deus.

Essa não é o caso do salmista em questão – mas reflete o fenômeno ao contar-se entre “os que descem a cova”, que “já não tem mais forças” e que “como os cadáveres que jazem ao túmulo, dos quais já não te lembras, pois foram tirados de tua mão”. Ele não é um dos mortos – Deus o pôs entre eles e, ao que parece, com algum propósito. A ira divina desce sobre sua cabeça como uma bigorna; contudo, por alguma razão, aceita essa ira com a mais desesperada das resignações. Sua aflição ímpar provém desta escolha, em que o salmista tem a consciência de que Deus é, ao mesmo tempo, escuridão e iluminação. Ela é dilacerada por uma dúvida que, mesmo que fique insinuada, é o mote crescente do salmo, e foi a mesma dúvida que somente Paulo teve a coragem de escrever na pedra branca do papel com todas as letras – “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”.

Eis aí o nó górdio da única questão que importa para os que meditam dia e noite sobre a vida do espírito: o problema do Mal. Não há salmo mais poderoso, mais ambíguo, e mais sincero sobre essa questão que atormenta até mesmo inteligências repletas de sutilezas como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Como nestes assuntos, o tempo é apenas uma marcação cerrada, às vezes nem sempre o efeito vem depois da causa, mas ao contrário. Assim, talvez a resposta à pergunta de Paulo esteja neste verso do salmo:

A ti, SENHOR, clamo cada dia;
a ti ergo as tuas mãos.
Acaso mostras as tuas maravilhas aos
mortos?
Acaso os mortos se levantam
e te louvam?
Será que teu amor é anunciado no
túmulo,
e a tua fidelidade, no Abismo da
Morte?
Acaso são conhecidas as tuas maravilhas
na região das trevas,
e os teus feitos de justiça,
na terra do esquecimento?

Deus é por nós, sem dúvida, mas o que acontece quando não fazemos mais parte de seu plano – isto é, quando estamos apenas mortos, sem nenhum contato com seu milagre, com sua fé, com sua esperança? Há um detalhe fundamental neste salmo, um detalhe que o torna mais inusitado, e também mais terrível: o salmista não diferencia mais o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Ao ler o verso “Estou como um preso que não pode fugir”, supõe-se que este sujeito não tem mais nenhuma chance de redenção. “As trevas são minha única companhia”, afirma no assombroso verso final. A justiça de Deus é tão rigorosa que uma infíma possibilidade de luz virou uma piada. Suas chances acabaram porque o mundo dos vivos é o mundo dos mortos.

Porém, é com a morte que se tem o confronto com o verdadeiro sentido da vida. E o sentido se mantém com o único método possível – perguntar, perguntar e perguntar. O questionamento sincero em busca de uma verdade maior, vence todos os sofismas niilistas que o homem inventou para provar sua superioridade – e a dúvida é nada mais, nada menos que aquela esperança disfarçada em chacal que a fé se alimenta todos os dias. “Existir é resistir”, afirmava Dilthey, e a resistência do espírito só se afirma na certeza já vislumbrada pela razão e guardada pela memória. Ao perguntar a Deus se “acaso mostras as tuas maravilhas aos mortos?”, o salmista tem certeza que já viu e experimentou essas mesmas maravilhas, mesmo por cinco segundos. Ele teve em suas mãos o “amor que é anunciado no túmulo”, mas o perdeu de alguma forma. Como ele o perdeu? Aqui reside o mistério: por que Deus, em sua justiça, jogaria um homem tão temente na “terra do esquecimento”?

Seria correr atrás do vento para descobrir qualquer resposta, para citar desta vez o Eclesiastes. O sofrimento humano é algo que não faz sentido – e a realidade implacável da morte é algo que não possui sentido nenhum. A pessoa estava aqui e de repente não está mais – o nada se transforma, no aguilhão da dor, na única coisa palpável. Portanto, quem seria o responsável de usar isso contra nós? Esse é o espinho da questão formulada por Paulo: se Deus é absoluto, como o nada não pode fazer parte Dele, se o nada é também uma parte do Todo?

Não é à tôa que o salmista profere três vezes um pedido de ajuda a Deus – “a ti clamo por socorro”, “a ti ergo as minhas mãos” e “que a minha oração chegue diante de ti”. A dúvida que corrói seu espírito está expressa na pergunta: “Por que, SENHOR, me rejeitas e escondes de mim o teu rosto?”. No mundo dos mortos, Deus não aparece mais, nem para aquele que deseja um pouco de vida. Sua ira é tamanha que “os pavores que me causam me destruíram./ Cercam-me o dia todo como uma inundação”. O infeliz não tem como escapar – sua caminhada rumo à morte parece ser inevitável.

Mas este não é o maior castigo de todos. O salmista é obrigado a mostrar não só a sua desgraça, como também a desgraça dos outros. Neste aspecto, ele não deixa de ser um profeta. O mundo em que “vive” é o da morte, e não parece existir outro. Talvez tudo não passe de um mundo só, um inscrito dentro de um segundo, e assim por diante, como as caixas chinesas. O salmo demonstra, com toda a claridade, o ser humano se deparando com o mistério divino, e este mistério está envolto em muros obscuros que, ainda assim, só estimulam o seu contato com o sagrado.

C.S. Lewis tinha uma sentença impecável sobre isso: “A dor é o grito de Deus em um megafone”. Santo Agostinho, que para resolver o problema do Mal usou de uma pirueta lógica que não fica nada a dever aos seus opositores de Maniqueu, dizia que o Mal fazia parte do caminho de aperfeiçoamento do espírito. No entanto, ele negava que o Mal fizesse parte da natureza de Deus pois “Deus é infinitamente bom”, logo o Mal era algo passivo, que se infiltrava no coração humano através do livre-arbítrio. Ninguém duvida que Agostinho tinha lá a sua razão em alguns pontos, mas seu raciocínio também implicava que, na onipotência divina, Deus, mesmo com sua infinita bondade, não sofria conosco. Ele só foi reparar isso na sua última obra, intitulada oportunamente de “Retratações”; contudo, foi um pensamento que não pode desenvolver com profundidade no final de sua vida, já que estava ocupado com o livro sobre a Trindade. Santo Tomás, com uma lógica tão cerrada quanto a de Aristóteles, ia pelo mesmo caminho, deixando uma brecha de interrogação sobre “as diversas formas que o Mal se transforma, seja no homem, como na natureza, e como essas formas se interagem de uma maneira insólita”.

Um dos fatos mais marcantes na história espiritual da humanidade é que Deus vai tomando consciência completa do sofrimento do homem – e esta é a verdadeira causa da encarnação em Jesus Cristo. O Mal é sofrimento em estado puro, seja ele metafísico, moral ou físico. Os pecados pagos na cruz é o símbolo mais forte que a redenção encontrou para se revelar definitivamente ao homem. No entanto, o sacríficio de Cristo não foi para trazer paz definitiva – foi para intensificar a luta.

Seria Deus, então, um sádico? É uma heresia afirmar isso, mas é uma pergunta que não pode deixar de ser levantada, já que ela pressupõe o questionamento sincero. Em Mateus 10:34, Jesus diz a seus discípulos: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não trazer paz, mas espada. Pois eu vim para fazer que o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora contra a sua sogra”. Ele estava falando sério. A discórdia enigmática não é a da luta social ou familiar, mas a do espirito. “A natureza do cristianismo é a luta”, escreveu Unamuno, “e a luta é sofrimento”. São nos chacais da dúvida que o homem, se quiser seguir uma vida verdadeira e desprovida de futilidades, deve descer entre as trevas, confrontar-se com a morte e então renascer, não só uma vez, mas sucessivamente, para que o espírito se fortaleça e trate tanto as luzes como as sombras com um carinho redobrado. O sadismo divino é mais que um mero capricho: ele se torna a única maneira de Deus mostrar a verdadeira bondade que é, afinal de contas, o grito da dor ampliado no megafone. Isso não é um raciocínio original. Faz parte da tradição espiritual do ser humano, e pode ser visto nos mitos de Ulisses, Enéas, Cristo, chegando até mesmo na Divina Comédia, de Dante Alighieiri, e no Waste Land, de T.S.Eliot. A profundeza é a maior das alturas porque se você teve como única companhia as trevas, sabe distinguir onde está a luz.

Entretanto, para muitos é mais fácil descer de uma vez que subir aos poucos. O século XX talvez foi a época em que o problema do Mal se tornou mais concreto e insolúvel, já que ele ficou surpreendentemente atraente. O mistério chegou a tal ponto que a irracionalidade chegou a ter requintes de lógica, e o pior, de lógica sistemática. Chamaram este malabarismo diabólico de “razão”, e o seu contrário de “sandice”. Um dos primeiros que perceberam esta doença que começava a se formar na consciência humana foi, por um incrível que pareça, um senhor mulato, míope, gago e epilético, nascido aqui mesmo no Brasil e chamado Machado de Assis. Em seu primeiro grande romance, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicado em 1881, há um episódio intitulado “Um delírio”. Brás Cubas, o personagem-defunto que narra suas memórias do caixão, conta que, à beira da morte, teve um delírio fantástico. Ele toma a forma de um barbeiro chinês que sofria os “caprichos de um mandarim”, depois a da Summa Theologica, de Santo Tomás, até ser levado por um hipópotomo até o início dos tempos. Na vastidão do nada, se depara com uma mulher que tinha “a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano”. Ela afirma ser a “Natureza ou a Pandora: sou tua mãe e inimiga”. Brás Cubas fica assustado: nunca havia refletido sobre essa condição ambígua das coisas do mundo. Na continuação da conversa, a mulher dá uma sentença tenebrosa para quem vai partir dessa para a pior – “Eu não sou somente vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera a voluptuosidade do nada”.

É claro que, conforme seguimos o livro, percebemos que Brás Cubas merece tal sentença já que sua vida se resume a uma patética miséria de espírito – algo muito comum na vida intelectual do Brasil atual. Mas Machado de Assis é o primeiro escritor do período realista (e aqui incluo Flaubert e Zola, sendo que Machado é superior a ambos) que, mesmo com toda a ideologia positivista cerceando o espírito, compreende a realidade não como um apanhado relativo de dados científicos ou econômicos, e sim como a realidade simbólica que cerca as vicissitudes do ser humano – como a sociedade brasileira, com sua vaidade de quinta categoria, sufoca a individualidade e a busca sincera da verdade em troca de um pensamento raso, que sequer toca nas profundezas obscuras da vida.

Machado não estava falando apenas do Brasil. Com sua paródia de Schopenhauer na figura de Quincas Borba, ele desprezava qualquer espécie de sistema ideológico que pudesse explicar as lacunas da realidade. A podridão humana era seu assunto favorito, mas sempre narrada com absoluta elegância e tato. Se o salmista do salmo 88 diz que as trevas são sua única companhia porque Deus quis assim, e a única coisa a fazer é suportar, a voluptuosidade do nada é atraente aos nossos Brás Cubas pelo simples motivo do tédio, o spleen que Baudelaire conseguiu preencher com um satanismo tolo. E aqui o Bruxo do Cosme Velho é afiado como as garras de um gavião ao capturar a revolta metafísica, provocada pela falta de sentido da vida, e que termina na revolta do homem contra a criação divina – eixo central da ideologia socialista promulgada por Karl Marx e seus asseclas.

O que nos leva à derradeira pergunta: Por que o homem não se contenta com sua própria condição? A revolta contra a criação divina é uma escolha fútil perto daquele que prefere ir até ao fundo da fragilidade de sua podridão. Mas daí o sujeito é obrigado a se deparar com o maior de todos os medos e o pior de todos os julgamentos: no fim da sua vida, o que você fez para manter a integridade de sua alma? Em um mundo onde luz e escuridão se digladiam a cada segundo, a corrupção parece ser a vitoriosa, e são poucos os que podem dizer, na hora do Último Julgamento, “eu não me vendi”. E aqui a venda pode ser qualquer coisa, do pacto demoníaco ao adultério, mas é principalmente a negação da realidade, substituindo-a por uma ilusão, uma bela mentira que inverte o sentido de tudo e de todos, e fragmenta o espírito em mil pedaços.

A escolha pelo mundo dos sonhos implica na renúncia da luta espiritual, e o que se segue é um efeito em cascata: do indivíduo passa-se para a representatividade social, política e intelectual da sociedade que ele faz parte. O que antes era ordem desemboca em desordem, pelo simples motivo de que a revelação de Deus foi trocada pela revelação do homem que acredita ser Deus. É a mesma coisa que pegar um pedaço de grama e querer vê-lo como um diamante. O resultado é uma percepção do mundo dividida, bifronte, morbidamente esquizofrênica. O grande problema é que isso não é comum em diagnósticos de doentes mentais; é mais notório nos eruditos e intelectuais que acreditam que pensam sobre o País para um bem comum – e todos sabem que de boas intenções o Inferno já não agüenta mais.

Esta é a semente do socialismo, o ópio que intoxicou os cérebros pensantes, como previu o perspicaz Raymond Aron. Seu fundo é diabólico e, como tudo que provém do enxofre, sofre inúmeras metamorfoses, mas o cheiro permanece inalterável. Contudo, a questão não é de acreditar em alguma coisa, e sim em acreditar se esta coisa tem algum sentido. É aqui que entra o complicado assunto da fé, mais especificamente da fé cristã. O salmo 88 é um poema javista, e em seus versos já está implícita aquela fé definida por Paulo: “A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos”. Não obstante, essa certeza está coberta por uma ambiguidade cristalina que, por si mesma, é a própria essência do cristianismo. Eric Voegelin toca o dedo na ferida e, o melhor, a defende, no final de seu “Science, Politics and Gnosticism”:

“Este fiapo de fé [definida por Paulo], na qual tudo fica suspenso na certeza em relação ao ser transcendente e divino, é, de fato, muito tênue. Pouca coisa tangível é dada ao homem. A certeza e a prova das coisas não vistas são certificadas através de nada exceto a própria fé, na qual o homem deve obter pela força de sua alma – e por enquanto não estamos falando do problema da graça. Nem todos são capazes desta resistência espiritual; muitos precisam ajuda institucional, e às vezes nem isso é suficiente. Nós estamos nos confrontando com a situação singular que a fé cristã está cada vez mais ameaçada, à medida que se expande socialmente, e cada vez mais leva o homem sob o controle institucional quando sua essência está claramente articulada. Esta ameaça chegou ao um ponto crítico na Alta Idade Média por causa do expansivo sucesso social. O Cristianismo moldou a instituição dos homens da sociedade Ocidental; e na nova cultura urbana, sob a influência das grande ordens religiosas, sua essência manteve um alto grau de transparência. Coincidentemente com sua grandeza, sua fraqueza também se tornou aparente: grandes massas de homens cristianizados que não eram fortes o suficiente para a aventura heróica da fé se tornaram suscetíveis a idéias que davam um grau maior de certeza sobre o significado de sua existência do que a fé. A realidade do ser como é conhecida em sua verdade pelo Cristianismo é muito díficil de suportar, e a fuga de ver a realidade para construções [de sistema] gnósticos será, provavelmente, sempre um fenômeno amplo nas civilizações que o Cristianismo permeou”.

O espírito cristão deve ter uma força fora do comum para aceitar o mundo como ele é – com todas as suas lacunas, mistérios e ambiguidades. O problema do Mal e a fuga sobre este problema não é algo que se deve pensar alguns minutos por dia. É para se pensar o tempo todo. Já posso escutar um desses leitores obtusos murmurar: “Então, deita no chão e espera a morte chegar”. Aqui tocamos no problema da graça, um problema que, se não for tratado com a humildade suficiente, se torna uma obsessão doentia, típica de orgulhosos enrustidos que gostam de ver a graça como uma competição rumo a São Silvestre. Quando a revelação da graça nos é dada, a maior preocupação não é se fulano de tal é predestinado ou não. O que importa é que algo nos foi dado, muitas vezes sem sabermos, e o díficil não é tê-la, mas mantê-la. Voltamos então à aventura heróica da fé que Voegelin fala, em que o primeiro sintoma da graça é a abertura amorosa da alma à realidade do ser transcendente, em que o homem percebe que sua individualidade é um dom natural e supra natural, e que todos, com muita perseverança e sorte, rumam para o bom caminho da unidade da consciência sobre a unidade da realidade e vice-versa. Quem não compreende que esta abertura amorosa não significa que o mundo está a seus pés, pode confundir o problema da graça com o puro problema da danação, e muitas vezes ao imaginar que se está no caminho da subida, na verdade está próximo do caminho da descida – e da descida sem volta.

Os obstáculos são muitos, e vão da ideologia dogmática até mesmo à própria educação religiosa, como se pode ver nos zumbis educados em igrejas evangélicas ou falsamente católicas. As fugas são as mais inventivas possíveis, e uma das melhores é o diálogo criado por Machado de Assis entre a Razão e a Sandice, logo depois que Brás Cubas acaba de narrar o seu delírio:

” – Não, senhora, replicou a Razão [à Sandice], estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí a de visitas e ao resto.
– Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério…
– Que mistério?
– De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir:
– Hás de ser sempre a mesma coisa…. sempre a mesma coisa…. sempre a mesma coisa…
E, dizendo isso, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando…”

Zombando do discurso iluminista e positivista, Machado de Assis mostra o medo da consciência humana que não quer dar o salto de fé para meditar sobre os dois grandes mistérios: o da vida e o da morte, e de como estas duas estão intimamente relacionadas. O triunfo da Razão sobre a Sandice resulta no irracionalismo, no romance com a Dama Idéia (para utilizar a expressão de Bruno Tolentino) que termina nos homicídios lógicos e absurdos do século XX: os holocaustos judeus, cristãos e russos, alimentados por regimes totalitários como Nazismo e Comunismo. Deu no que deu: a falência espiritual da humanidade em que a morte é um comércio, a vida é uma piada e a cultura é instrumento de propaganda política. O Bem e o Mal foram trocados pelo Poder; a moral deu lugar a uma ética “imparcial”; e a fé – bem, a fé virou lavagem cerebral.

Tudo isso porque o homem não seguiu o exemplo do nosso salmista que, mesmo no mundo dos mortos, não deixava de olhar para cima, enquanto seus pés estavam atolados na lama do chão. Atualmente, o Brasil está cada vez mais próximo de ser esse mundo. Já estamos contados entre àqueles que estão na cova, e provavelmente nem Deus se lembra mais de nós. Será que, algum dia, Ele mostrará a sua fidelidade – ou sua ira? O confronto com as trevas é uma das atitudes mais nobres do espírito humano. E é também um dos mais terríveis. Bob Dylan cantou uma vez : “If the Bible is right, the world will explode” (Se a Bíblia estiver certa, o mundo vai explodir). Que exploda, então. Quem precisa deste mundo quando a procura pela verdadeira ordem está fadada ao fracasso – e é neste fracasso que está contido, surpreendentemente, nosso triunfo?