Arthur Dapieve é um dos melhores críticos musicais do país, um dos poucos que consigo ler e imaginar que cada jornalista cultural brasileiro tem um pouco de Lester Bangs dentro de si, mas desta vez ele se equivocou. No artigo “Imagine o lado selvagem”, publicado no jornal eletrônico no., Dapieve discorre sobre o sentido “amargo” da canção “Imagine”, aquela do Jonh Lennon que foi gravada até pelo Paulo Ricardo, e faz uma comparação entre o cantor nascido em Liverpool e um outro, nascido em Nova York: Lewis Allan Reed, também conhecido como Lou Reed.

O primeiro erro é que não dá para comparar Reed e Lennon. Um é infinitamente superior ao outro e, cá entre nós, “Imagine” é uma das canções mais chatas do planeta, uma clara influência da nefasta Yoko Ono na vida de Lennon. Se alguém quiser fazer uma comparação mais plausível entre essas músicas que falam sobre “utopias”, meu voto vai para “Mull of Kintyre” de um outro ex-beatle, Paul McCartney, uma jóia de concisão e melancolia, recheadas de boas intenções.

No entanto, se alguém quiser uma canção verdadeiramente pacifista – com um sentido realmente “amargo” -, não será nem em Lennon, nem em McCartney, e muito menos em Lou Reed que teremos a escolhida (apesar de Reed ter escrito “Coney Island Baby”, uma ode sobre o poder do amor em momentos de desilusão e tristeza). Quem ganha o jogo é Bob Dylan e o leitor não se preocupe pois não falarei de “Blowin´in the wind” ou “The Times They-A- Changin´”.

Falo de “Idiot Wind”, talvez uma das canções mais amargas do século XX. Para quem é fã de primeira viagem nesse ramo de estudos que é a “dylanologia”, vale dizer que “Idiot Wind” faz parte de “Blood on the Tracks” (1975), a obra-prima de Dylan. O disco é o retrato devastador do que foi e do que poderia ter sido um relacionamento entre um homem e uma mulher, e foi feito enquanto Dylan enfrentava a primeira separação de sua mulher e mãe de seus cinco filhos, Sara Lowndes. “Blood on the Tracks” (“Sangue nos Trilhos” ou “Sangue nas Faixas”, o duplo sentido já dá uma noção da complexidade da obra – e o título é uma clara referência à crucificação de Cristo) é díficil e emocionante porque mostra um artista se abrindo quase completamente, permitindo ao seu público uma amostra íntima não só de sua visão de mundo, mas também do que acontecia dentro de seu espírito conturbado.

“Idiot Wind” pode ser de uma raiva absoluta (e é), mas seu “pacifismo” está escondido dentro de seu ódio. Diferente do “Imagine” de Lennon, sua letra é longa, complexa, enigmática. É um claro paralelo à resposta que sopra no vento cantada por Dylan no início da carreira. Começa com uma espécie de anedota – notícias falsas na imprensa, uma fuga para a Itália por causa de um assassinato de um homem chamado Gray, uma herança de um milhão de dólares e um comentário jocoso sobre o fato de ser sortudo – para desembocar numa confissão perversa:

Even you, yesterday you had to ask me where it was at,
I couldn’t believe after all these years, you didn’t know me better than that
Sweet lady
.”

(Até você, ontem, teve de me perguntar onde estava,
Não pude acreditar que após todos estes anos, você não me conhecia tão bem,
Doce dama)

A partir daí, é so dor e amargura. Dylan usa o símbolo do “vento imbecil” para discutir os tormentos de um relacionamento entre duas pessoas, a desordem do mundo, a relação sempre incompreendida entre um artista e seu público e, principalmente, como é díficil ser um sobrevivente de si mesmo. Porque “Idiot Wind” – e todo “Blood on the Tracks” – é justamente isso: o relato de um sobrevivente, o desabafo de alguém que passou pelo fio afiado da perda e está vivo para contar a história:

I been double-crossed now for the very last time and now I’m finally free,
I kissed goodbye the howling beast on the borderline which separated you from me.
You’ll never know the hurt I suffered nor the pain I rise above”.

(Fui traído pela última vez e estou finalmente livre,
Dei um beijo de adeus no monstro assustador na fronteira que separava eu de ti,
Você nunca saberá a mágoa que sofri e a dor que superei)

Tanto Dylan como o narrador (e mesmo o próprio ouvinte) são aquele soldado que não conhece mais o que é paz ou quietude, mas não desiste de procurá-la porque sabem, de alguma forma, que podem perder todas as batalhas, e ainda assim ganharam a guerra. Essa guerra, claro, é a vida. “Idiot Wind” não cai no erro de escorregar em uma utopia típica de hippie desiludido (como é o caso de Lennon) ou então no sonho nostálgico do bom moço (McCartney é o exemplo óbvio). Dylan canta com um ódio impressionante a ruína do mundo tal como ele é, e não como ele gostaria ter sido. Seu ódio é marcante porque é o sentimento que qualquer sobrevivente deveria ter se quiser ser chamado de humano. Quem venceu a morte sabe o que é isso: o fato de continuar a viver o que os outros não conseguiram. É um fardo, e dos mais pesados, e não há nada mais natural que se revoltar contra esse absurdo.

Porém, como dizia Camus, depois do absurdo, vem a decisão de aceitá-lo ou não. E aqui está a grandeza de Dylan: “Idiot Wind” é o retrato acurado do ódio do sobrevivente, mas quem escutar as dez faixas de “Blood on the Tracks” verá que a renúncia e a resignação são o caminho escolhido. As três últimas faixas do álbum – “If You See Her Say Hello”, “Shelter from the Storm” e “Buckets of Rain” – são de uma tristeza que não deixa pedra sobre pedra. O narrador perdeu tudo, menos a esperança. Ele continua na estrada, sem nenhuma ilusão (“Friends will arrive, friends will dissapear” – Amigos vão chegar, amigos vão desaparecer), perseverando para ganhar na guerra. No entanto, é uma vitória que, no final, transformou as feridas em fortalezas, e aí está o silêncio da sua paz. Esse é o prémio pelo verdadeiro sono dos justos, depois dessa amarga constatação:

Life is sad
Life is a bust
All ya can do is do what you must.
You do what you must do and ya do it well,
I’ll do it for you, honey baby,
Can’t you tell?

(A vida é triste,
A vida é um empecilho,
Tudo o que você pode fazer é o que você deve fazer.
Você deve fazer o que deve fazer e fazer bem,
Farei por você, querida,
Não percebe?)

Com uma lição dessas, imaginar o tal do lado selvagem vira uma história da carrochinha.